NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Pedro Henriques da Mesquita (Moncorvo, 1589 - Coimbra, 1638 )

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Um dos filhos de Pero Henriques, o Cavaleiro, chamou-se Francisco Vaz, o Amarelo, de alcunha e viveu em Torre de Moncorvo, casado com Maria Vaz, que lhe deu 5 filhos e 3 filhas. Por 1618, quando em Moncorvo começou uma nova vaga de prisões, Maria Vaz era já falecida e Francisco, vendo prender o irmão Domingos, abalou com os filhos solteiros para Medina del Campo, Castela. Dali passaram a Madrid, onde permaneceram 2/3 anos, acabando por fixar residência em Pastrana, onde viviam já uns parentes de Maria Vaz.

Dos filhos de Francisco, fixemos o nome de dois que, passaremos a designar como os irmãos Munhóz. Um deles era o nosso biografado, Pedro da Mesquita, que tinha uns 28 anos quando saiu de Moncorvo. Seria ainda solteiro quando rumou a Pastrana, vindo a casar mais tarde, com Mécia de Penha, natural de Vila Franca de Lampaças.

O outro, Diogo da Mesquita Munhóz, era 5 anos mais novo e casou com Genebra Henriques, da família Eminente, de Vila Flor, terra onde fixaram residência.

Pedro e Diogo eram mercadores e trabalhavam em conjunto, levando e trazendo linhos e tecidos, entre Portugal e Espanha. Possivelmente a sua rede de negócios estender-se-ia a outros familiares, nomeadamente aos irmãos e cunhados.

Na vaga de prisões de que atrás se falou foram levados vários tios dos Munhóz, que os denunciaram como judaizantes, pelo que lhe foram abertos os respetivos processos na inquisição de Coimbra que, em 16.5.1636, emitiu um decreto de prisão, escrevendo, nomeadamente:

- … Prisão de Pero Henriques e Diogo Henriques, ambos irmãos, naturais de Torre de Moncorvo (…) de onde se ausentaram mudando os nomes e de presente se chamam Diogo da Mesquita Munhóz e Pedro da Mesquita Munhóz… (1)

Obviamente que o decreto de prisão foi enviado aos comissários da inquisição existentes em Trás-os-Montes. Especialmente atento e vigilante ficaria o comissário Francisco Luís, arcediago de Mirandela no cabido da sé de Miranda do Douro.

Quase um ano depois, em 16.4.1637, “com muita diligência e com alguns espias”, o arcediago prendeu os irmãos Munhóz, no decurso de uma das suas viagens de negócios entre Pastrana e Trás-os-Montes. Pedro foi preso na alfândega da cidade de Miranda quando estava despachando 7 cargas de linhos e lenços que levava para Castela. (2) Diogo foi preso em Rossas, junto a Bragança, onde iria acertar algum negócio. (3)

Juntamente com as mercadorias e o dinheiro que traziam, foi apreendido a Diogo Munhóz um papel que trazia dentro de “uma caixa de folha de lata, com um cordão de seda encarnada cosida e lacrada em um pano de estopa”. Era uma certidão, assinada pelo cirurgião-mor do hospital real de Madrid, Andrés de Tamajo, dizendo que, por causa de uma doença venérea, tinha sido necessário cortar-lhe o prepúcio.

Presos os dois mercadores, sequestrados os bens e garantidos os 20 mil réis estipulados para as despesas de alimentação (4) e transporte de cada um deles para Coimbra, tratou o comissário de fazer um relato minucioso da ação, tudo enviando para Coimbra. Manuel Escobar foi o homem escolhido para dirigir a leva dos prisioneiros que foram entregues ao alcaide dos cárceres em 29.4.1637.

Sobre o processo de Diogo Munhóz, diremos que a certidão assinada em 1620 pelo Dr. Tamajo lhe foi de vital importância, já que os três médicos de Coimbra que o observaram, todos concluíram que o corte do prepúcio não fora motivado por qualquer doença, mas sim da circuncisão que lhe terão feito. A certidão, possivelmente falsificada, seria um mero disfarce. O caso era de extrema gravidade. Ele, porém, continuava a defender-se com a certidão e não houve outro remédio senão contactar a inquisição de Toledo para averiguar da veracidade da certidão. E sendo interrogado o dito cirurgião pelos inquisidores espanhóis, confessou lembrar-se do caso e de a assinar. (5)

De resto, processo correu normal, já que Diogo Henriques da Mesquita, aliás, Diogo da Mesquita Munhóz, logo confessou suas culpas e pediu misericórdia. Acabou condenado em cárcere e hábito perpétuo, no auto da fé de 30.10.1638.

Mais complicado foi o processo de Pedro Henriques da Mesquita, que foi queimado no mesmo auto da fé. A sentença é muito clara e elucidativa do curso do processo e da sua vivência religiosa dentro dos cárceres:

- Por serem suas confissões muito estreitas, mostrando que confessaria mais alguma coisa se nesta mesa se contentassem com isso (…) nem confessar as guaias (6) que fez no cárcere (…) nem confessar que deixava de comer carne de porco no cárcere (…) e estar o réu tão entranhado na lei de Moisés que por sua guarda fez nestes cárceres muitos jejuns judaicos, como dizem os vigias e o réu confessou declarando também que se não podia ver livre da dita crença (…) e o réu pretendia embuçar com as contradições e repugnâncias de sua crença em que, mesmo ensinado e advertido com grande miudeza, respondia como pessoa de pouco juízo e capacidade, sendo de bom entendimento e muito acautelado no que mostrava não querer responder a propósito…

Cristão ou judeu? Bem ou mal julgado? Só Deus o saberá. Por nós temos a certeza de que Deus aceitará que rezemos a seguinte oração que Pedro da Mesquita Munhóz costumava rezar:

Perdóname Señor que te he ofendido,

perdona al miserable que te llama,

perdóname Señor que me he perdido.

No me condenes Señor a la eterna llama,

antes vuelve tus ojos a mirarme.

Sufre el que por amarte se desama,

valga pera contigo confessarme,

válgame ante Ti llorara mi ofensa

y pliegote un poco de escucharme,

que se tu graça disto me despensa

e me ayudas Señor, en lo que digo

servirá el escucharme de defensa.

Pecador soy, Señor, tu eres testigo,

que a tus ojos divinos no hay negarlo,

pues desde mininés andas conmigo,

que aunque a Ti el dissimularlo

era tiempo perdido. E no por eso lache

de amar mi mal o ejecutarlo,

mas quien te podrá contar  aquel processo

y aquel larga historia de mis males,

que el corazón me ahoga com su peso.

Verguenza he de pensar en los mortalhes

pecados, que en tus ojos cometía,

com que lachaba atrás los animales.

Quien duda pues que quando te offendía,

tu grande misericordia me miraba.

 

Notas:

1-ANTT, inq. Coimbra, pº 7067, de Diogo da Mesquita Munhóz; pº 5770, de Pedro Henriques da Mesquita.

2-Pº 7067 - Relatório feito pelo notário do santo ofício em Miranda do Douro, Francisco de Chaves: - Em companhia deste preso ia seu irmão Manuel da Mesquita Henriques, solteiro, que levava sete cargas de lenço para Castela e por me parecer que nelas ia fazenda do preso, as sequestrei…

3-IDEM : - Por me constar que o dito Diogo da Mesquita Munhóz partira do lugar de Duas Igrejas, em companhia de seu irmão Manuel de Mesquita Henriques e Francisco Vaz Faro e de outro mercador que não sei o nome (Pedro Munhóz?), todos de Vila Flor e que antes de eu tornar a esta cidade, o dito Diogo da Mesquita se apartara dos mais. E depois de eu o ter buscado, os vi na alfândega onde os companheiros estavam despachando as mercadorias que levavam, como em outras partes, e por o não achar, nem notícia dele, de mandado do senhor comissário me pus a cavalo para me ir em seu alcance pelo caminho que vai para Castela, e por me dizer o comissário que levasse gente comigo, chamei Manuel de Escobar, cidadão desta cidade e meirinho nela, e ambos fomos (…) e no lugar de Rossas o prendi e trouxe a esta cidade…

4-Do inventário dos bens que trazia o Diogo, consta “um macho que ao tempo de sua prisão se vendeu na praça de Miranda por 12500 réis e uma escopeta por 1500 réis”. Dos restantes bens foi logo passada ordem pelo arcediago para o juiz de fora de Vila Flor inventariar. Não sabemos se alguma das 13 cargas que o grupo estava despachando na alfândega era de Diogo, uma vez que 7 delas seriam de seu irmão.

5-A operação não foi feita pelo Dr. Tamajo mas pelo médico português, cristão-novo, então residente em Madrid e que, por 1630, deixou se foi para a Flandres, Manuel Nunes de Leão, apresentado como “cirujano e romancista”.

6-Guaias são orações em forma de lamentos, com inclinações simultâneas do corpo e da cabeça, com as mãos levantadas e abertas. Há quem veja nesta forma de rezar a origem do Fado, a original canção portuguesa.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães