NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Lopo Rodrigues,vereador da câmara (n. Vila Flor c. 1518)

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Lopo Rodrigues nasceu em Vila Flor pelo ano de 1518. Seus pais, Jerónimo Rodrigues e Filipa Lopes pertenceriam à geração dos “batizados em pé”.
Seria um homem abonado de recursos financeiros, pertencendo à classe dos rendeiros. Explorava uma vinha e trazia arrematada a cobrança das rendas de Santa Comba da Vilariça e de Vilarelhos, com tulha instalada em cada uma destas localidades.
E porque era homem rico e conceituado, foi por algumas vezes “eleito” vereador da câmara de Vila Flor. E serviu também o cargo de almotacé, competindo-lhe tratar do policiamento da vila, da limpeza das ruas, da taxação de pesos e medidas e da regulação do preço dos alimentos. A este propósito e tendo em conta os documentos até hoje apresentados, pensamos que a lei de segregação dos cristãos-novos proibindo-os de exercer estes cargos municipais terá exatamente começado em Vila Flor, a título experimental, como hoje se diz. Posteriormente seria estendida a todo o país. (1) O mesmo se diga com a lei da “limpeza de sangue” exigida para servir em qualquer cargo, para entrar em qualquer ordem religiosa, ou na universidade e até mesmo para entrar num barco e viajar para o estrangeiro. (2) Pensamos também que neste processo de escolha de Vila Flor para a aplicação de tais medidas terá sido uma consequência da nomeação do inquisidor Diogo de Sousa para o tribunal de Coimbra em 1571 e da tomada de posse do cargo de abade de Vila Flor do inquisidor de Évora Jerónimo de Sousa.
O facto de Vila Flor ser então escolhida como campo experimental de novas leis antijudaicas, significará que a força da gente da nação era ali muito grande e estava sob vigilância apertada da inquisição. E sendo a terra da circunscrição do arcebispado de Braga, então governado pelo bispo/inquisidor Baltasar Limpo, viu-se assolada por uma vaga de prisões.
No meio do turbilhão foi apanhado um Álvaro Rodrigues, Lamegão de alcunha, estalajadeiro em Vila Flor. (3) E estando preso em Lisboa, contou que, 6 anos atrás, vindo de Santa Comba para Vila Flor, em companhia de Lopo Rodrigues, este lhe disse que andava inquieto e tinha medo de ser preso pois que, em Santa Comba, em presença de João Novo e outro lavrador cujo nome não recordava, ele dissera que Nossa Senhora não era virgem. E tinha medo que João Novo e o outro o denunciassem.
Foi quanto bastou para prenderem também Lopo Rodrigues, na inquisição de Lisboa, em 24 de Maio de 1558. (4)
Aliás, ele tinha já uma curta experiência destas coisas pois que, antes de 1547 fora metido na cadeia de Vila Flor, por ordem do vigário geral de Vila Real que, em nome e por ordem do arcebispo de Braga visitara a terra. O processo decorreu em Braga e não fica claro se ele foi libertado por ser declarado inocente ou em virtude do perdão geral então decretado pelo papa.
Antes de prosseguirmos com o processo, vejamos a situação familiar de Lopo. O pai seria já falecido e a mãe encontrava-se, há 2 anos, a morar na Galiza, com o filho Afonso Rodrigues que ali estava casado e a morar em Vila Ávila (ou Orense?). Tinha mais 3 irmãos, a morar em Vila Flor e uma irmã, casada na mesma Vila Flor e que virá também a conhecer as cadeias da inquisição, anos depois. (5)
Do resto da família, tios e primos, repartiam-se entre Vila Flor, Mirandela, Vila Real, Murça e Galiza, alguns deles seriam também hospedados nas masmorras do santo ofício. Ele era casado com Inês Dias e o casal tinha 7 filhos.
Metido na cadeia, Lopo Rodrigues organizou a sua defesa provando que era bom cristão, membro das confrarias de Nª Senhora do Toural e do Santíssimo Sacramento e dava esmolas regulares aos mamposteiros (6) do convento dos Trinitários da vizinha freguesia da Lousa e do convento da Graça em Lisboa. E era tão bom cristão que o abade e os confrades do Santíssimo Sacramento de Vila Flor o encarregaram de ir a Espanha comprar um pálio para a igreja. E nessa compra ele entrou ainda com uma avultada quantia: 50 mil réis. Provou também que era um cidadão exemplar que acompanhava sempre “com os homens honrados e de bons feitos”. Aliás, ninguém o acusara de qualquer falta no seu comportamento religioso e sabia bem a doutrina.
Embora os réus não fossem informados sobre as testemunhas de acusação, Lopo Rodrigues facilmente chegaria ao Lamegão, dado o seu historial “judeu” e o facto de ter sido preso anteriormente. E mais facilmente ainda, conseguiu provar que o Lamegão o denunciara por ódio e vingança. E mostrou que, ao contrário dele, o denunciante “era tido por mau cristão por toda a Vila Flor (…) homem de mau viver e falsificador de pesos e medidas de seu ofício de carniceiro, que usou na cidade de Lamego”, de onde fugiu para o reino da Galiza. Além de que era um homem “que se tomava do vinho” muitas vezes.
E contou que, de uma ocasião, na qualidade de vereador, o penhorou por dívida de dois mil réis. Acrescentou que, no ano anterior, em dia da festa de Corpo de Deus, sendo almotacé, lhe aplicou uma multa por não ter a rua varrida à porta da sua estalagem.
Referiu que trazendo ele arrendada a sanjoaneira (7) da comenda de Santa Comba, a trespassou por 100 mil réis/ano a Francisco Fernandes, cunhado do Lamegão “e em obras mais que irmãos”, resultando avultados prejuízos, não conseguindo cobrar tal montante, do que ficaram seus inimigos, dizendo que Lopo o tinha enganado e que havia de pagar.
Falou também de um acontecimento que, anos antes, abalou Vila Flor e que foi o assassínio de Manuel Martins, genro do Lamegão. O matador foi Simão Rodrigues, primo de Lopo. E depois de o matar, encerrou-se na igreja matriz de Vila Flor, lugar onde não podia ser preso. E quem o ajudou nesse “esconderijo” foi o mesmo Lopo, que também o ajudou a fugir para o couto de homiziados de Bragança onde se encontrava a viver, em paz e sossego, com a sua família.
Claro que os inquisidores mandaram o vigário geral de Torre de Moncorvo, Pero Fernandes de Lima, (8) fazer diligências em Vila Flor, sendo ouvidas as testemunhas indicadas por Lopo Rodrigues, as quais confirmaram todos os factos. O próprio João Novo, lavrador de Santa Comba, declarou que não ouvira nunca o réu falar da virgindade de Nossa Senhora e nada comentara com o Lamegão.
Claro que, vistas as provas, a sentença dos inquisidores não podia ser outra senão a absolvição do réu, e ditada nos seguintes termos:
- A pena é o tempo em que esteve preso e vá solto e pague as custas de seu livramento, porém o admoestam muito que procure sempre de viver como verdadeiro cristão, no coração e nas obras.

NOTAS:
1-Alvará de D. Sebastião de 1561 proibindo os cristãos-novos de Vila Flor de servirem em cargos públicos – MORAIS, Cristiano de, Cronologia Histórica de Vila Flor 1286-1986, p. 10.
2-Alvará de 1574, visando os cristãos-novos de Vila Flor – ANDRADE e GUIMARÃES, Caminhos Nordestinos de Judeus e Marranos, in: jornal Terra Quente de 15.12.1999. MEA, Elvira Cunha de Azevedo, A Inquisição de Coimbra, p. 177: - Em 1572 um Breve nega aos cristãos-novos acesso ao hábito de Cristo, logo seguido da provisão de 1574 em que se determina a impossibilidade de conversos se empregarem na câmara de Vila Flor. TAVARES, Maria José Ferro, Los Judíos en Portugal, p. 355: - Cronologia. 1574 Exclusión de los cristianos nuevos de la eleccion para los cargos de la cámara de Vila Flor.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 1581, de Álvaro Rodrigues, lamegão.
4-IDEM, pº 2175, de Lopo Rodrigues.
5-IDEM, inq. Coimbra, pº 8377. De Isabel jerónima, casada com Diogo Dias;
6-Os mamposteiros eram pessoas que nas diferentes terras estavam nomeadas para recolher esmolas para resgatar os cristãos que se encontravam prisioneiros dos mouros ou dos turcos.
7-Sanjoaneira porque se iniciava e terminava em dia de S. João.ANTT, inq. Coimbra, pº 8013, de Francisco Fernandes.
8-O vigário Pero Fernandes de Lima sucedeu no cargo ao licenciado Aleixo Dias Falcão que em 15.3.1560 foi instalar o tribunal da inquisição de Goa. Um e outro eram homens de confiança do bispo/inquisidor Baltasar Limpo.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães