NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - João Lopes Dias (n. Sambade, 1631)

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Nascido em Sambade, concelho de Alfândega da Fé, por 1631, João Lopes Dias tinha uns 10 anos quando a inquisição lançou na terra uma eficiente operação de “limpeza do sangue da infecta nação”. Uma das pessoas que então foram levadas presas para Coimbra foi sua mãe, Brites de Leão, (1) em setembro de 1640, juntamente com sua irmã Filipa Vaz. A “manada” foi ainda composta com outras 6 mulheres, conduzida até Coimbra pelo familiar Francisco de Gouveia Pinto, homem da nobreza de Torre de Moncorvo.
Não sabemos se foi por essa causa mas o facto é que o pequeno João foi então levado para Madrid por seu tio materno, Francisco Vaz de Leão, casado com Isabel Rodrigues, igualmente fugidos de Sambade, acusados de ter “sinagoga” em sua casa. Isabel era irmã do grande mercador e argentário António Rodrigues Mogadouro. (2) E aqueles tios o introduziram então no ensino da lei judaica.
Aliás, em Madrid estavam ainda estabelecidos dois tios paternos de João: Luís Dias e Francisco Dias, nascidos em Vinhais. Esta era também a terra natal de seu pai, André Lopes Dias, nascido por 1607, também ele aprisionado pela inquisição de Coimbra em 1647, quando viviam junto a Melgaço. Saiu condenado em cárcere e hábito no auto da fé de 10.7.1650, posto o que transferiu a sua morada para a cidade de Braga onde negociava em panos de linho e seda. Posteriormente rumou a Madrid onde, em 1646 o encontramos negociando em panos de linho. (3)    
Para além de Madrid, João Lopes Dias morou em Valhadolid e na igreja maior desta cidade foi crismado. E se a ida de João para Castela coincidiu com a prisão da mãe, também o seu regresso a Portugal, 10 anos depois, aconteceu quando o pai saiu das masmorras da inquisição. Não regressou foi à antiga morada de sua família, em Sambade. Aliás, esta era já uma terra “queimada”, para os hebreus, que dali fugiram todos.
Possivelmente voltou para casar com Helena Correia, natural de Vila Flor, filha de um médico de Lebução, chamado Pedro Dias da Mesquita e sua mulher Violante Henriques, de Vila Flor. Uma das irmãs de Helena Correia chamou-se Isabel Henriques, (4) a qual casou com Rodrigo Vaz de Leão, primo de João Lopes Dias, filho de seu tio materno António Vaz de Leão.
João e Helena viveram algum tempo em Braga mas breve estabeleceram morada em Lebução. Profissionalmente, João afirmava-se como mercador mas… a partir do ano de 1659, quando a inquisição intensificou a repressão em Trás-os-Montes, a sua principal fonte de rendimentos seria outra: a de passador de judeus para Castela. Obviamente que isso inquietava os inquisidores de Coimbra que, em setembro de 1660, escreviam para o comissário estabelecido na sede do concelho, dizendo:
- Fazemos saber ao senhor inquisidor Francisco Miranda Henriques, abade de Monforte de Rio Livre e comissário do santo ofício, que nesta mesa há informação que um João Lopes Dias e Manuel da Fonseca, ambos moradores no lugar de Lebução, passaram e ajudaram a passar para o reino de Castela muitas a pessoas da nação dos cristãos-novos que deste reino iam fugindo no mesmo tampo que nas terras onde moravam se faziam prisões por parte do santo ofício. E porque convém ao serviço de Deus e do santo ofício saber-se averiguadamente nesta inquisição a verdade do acima dito, cometemos a vossa mercê… (5)
Como ordenado, o comissário abriu um processo sumário, deslocando-se por várias aldeias do concelho, acompanhado pelo padre Apolinário Luís, reitor da freguesia da Castanheira, no papel de escrivão, ouvindo as mais diversas testemunhas. Uma delas foi Baltasar de Barros, morador em Águas Frias, capitão da companhia de milícias dos lugares da raia, a quem competia exatamente fiscalizar a fronteira. Veja-se um pouco do seu testemunho:
- Hoje, 14 de janeiro de 1661 (…) se encontrou com João Lopes Dias, morador em Lebução, homem da nação (…) e vindo pelo mesmo caminho de João Lopes Dias, lhe cometeu a ele testemunha que quisesse ajudar a passar para Castela algumas pessoas e que elas haviam de dar algum dinheiro e que seria bom ganhássemos 40 ou 50 mil réis por passar algumas pessoas para o reino de Castela (…) Por dizer que dali a 4 ou 5 dias tinha já determinado passar a dita gente, ele testemunha lhe disse que antes de 4 ou 5 dias lhe daria a resposta…
Não sabemos que resposta lhe deu, mas sabemos que o mesmo capitão de milícias contou outras cenas acontecidas com pessoas fugidas que passaram a fronteira com a ajuda do passador João Lopes Dias. Vejamos mais um pouco do seu depoimento:
- Falando na passagem deles com o dito João Lopes Dias, este lhe disse que também fora ajudá-los a passar. E que tinha notícias várias e muitas do dito João Lopes Dias e Manuel da Fonseca (…) tinham passado para os ditos reinos de Castela e Galiza muita gente da nação desde o ano de 1659 a esta parte…
Uma história que foi contada por várias testemunhas é verdadeiramente exemplar, no que respeita à intervenção de pessoas estranhas e comportamentos oportunistas. Contaram que três cristãos-velhos da aldeia de S. Vicente terão contratado a passagem de um cristão-novo e sua mulher por 16 patacas. Porém, chegada a noite e no ato da passagem, sentindo-lhe mais dinheiro, lhe tomaram 90 patacas e a espada que levava. Tempos depois, indo João Lopes Dias a Castela e encontrando o dito cristão-novo no lugar de Terraso, junto à fronteira, este lhe contou o sucedido. E terão combinado a recompensa pela recuperação do que foi roubado. De regresso a Portugal, na sede do concelho, João Lopes Dias mexeu os cordelinhos e conseguiu que os meliantes fossem metidos na cadeia e restituíssem as 90 patacas e a espada.
Do sumário dos passadores de Lebução não nada de concreto resultaria. De contrário, continuaram as prisões de cristãos-novos de Lebução acusados de judaísmo. E antes que fossem também prendê-lo, João Lopes Dias pegou na mulher e ambos foram apresentar-se na inquisição de Coimbra, ao início do mês de Julho de 1662. Ambos confessaram as suas culpas, mostrando-se arrependidos e pedindo perdão. Foram sentenciados em penitências espirituais, tendo comparecido vestidos de sambenito no auto da fé celebrado em 9.7.1662. (6)
O casal tinha 1 filho e 3 filhas, uma das quais se chamou Violante Henriques e tinha 5 anos quando o pai se apresentou na inquisição de Coimbra. Vamos encontrá-la, pelo ano de 1691, casada com Manuel de Santiago, ou de Almeida que, em julho de 1662, passou também pelo mesmo tribunal, contando então 16 anos. Ignoramos, porém, se ali se cruzou com o nosso biografado. Mas cruzaram-se, de certeza, por 1691, Em Agrochão, Bragança, conforme testemunho de seu filho, Francisco de Almeida: (7)
- Disse que, haverá 20 anos, em uma horta das casas de seus pais, Manuel de Almeida, já defunto, casado segunda vez com Violante Henriques, já defunta, ele de Agrochão e ela de Lebução, com ele e com João Lopes Dias, tratante, casado com Helena Correia, pais de Violante Henriques, natural de Lebução e agora ausente em Castela…
Notas
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 2218, de Brites de Leão.
2-ANDRADE e GUIMARÃES, A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa, ed. Vega, 2007. Francisca Lopes era outra irmã de Isabel, também moradora em Sambade e então levada prisioneira para a inquisição de Coimbra. Depois de libertada foi igualmente a morar para Madrid e, sendo já viúva, foi para Bordéus. 
3-SCHREIBER, Markus – Marranen in Madrid 1600 – 1670, p. 94, Franz Steiner Verlag Stuttgart.
4-Rodrigo Vaz de Leão nasceu em Vila Real e ali morou, casado com Isabel Henriques. O casal transferiu a residência para Lisboa, abrindo uma loja comercial na Rua Nova. Prosperavam os negócios quando, em 1663, a inquisição os prendeu. Isabel acabou queimada na fogueira do auto da fé de 4.4.1666. Rodrigo, foi penitenciado com cárcere e hábito perpétuo, e mais tarde emigrou para a França. Maria Henriques, uma filha do casal, viria a casar com Gaspar Mendes Cespedes, de Carrazedo de Montenegro e ambos conheceriam também as cadeias da inquisição.
5-ANTT, inq. Coimbra, processo 9935, sumário dos passadores de Lebução.
6-IDEM, pº 9346, de João Lopes Dias; pº 8573, de Helena Correia.
7-IDEM, pº 2846, de Manuel de Santiago ou de Almeida; pº 7118, de Francisco de Almeida.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães