NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Guiomar Lopes (n. Rebordelo, 1652)

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Filha de Tomé Lopes e Ângela Cardosa, Guiomar nasceu em Rebordelo, por 1652. Em pequena foi levada para Villamandos, Castela e contava uns 15 anos quando foi presa pela inquisição de Valhadolid, saindo penitenciada em cárcere e hábito perpétuo e sequestro de bens, em 31.10.1667.
Depois de libertada e cumprida a penitência de 2 anos, regressou a Portugal e foi para Lebução, onde casou com João Dias Pereira. (1) Em 1672 viviam em Soutelo Verde, Galiza, onde lhe terão nascido os filhos Manuel Dias Pereira e Isabel Pereira.
Regressaram a Portugal e foram instalar-se no Porto, onde residiram 5 anos. Ali nasceu o filho Pedro Dias Pereira.
A família rumou então para Castela e fixou-se em Benavente, ali explorando um estanco do tabaco, arrendado ao contratador Gabriel de Sola que tinha o monopólio da venda nos bispados de Salamanca, Cidade Rodrigo, Ávila e Zamora. Não sabemos se em tal arrendamento exerceu alguma influência a mulher de Gabriel Sola, (2) chamada Ana Maria de Vilhena, que fora companheira de Guiomar na cadeia de Valhadolid. Também não sabemos se ajudou alguma coisa o conhecimento que havia entre o marido de Guiomar e um Fernando da Fonseca que casou em Bragança com Jerónima Ledesma e em Castela trabalhava com Gabriel Sola.
Em Benavente viveram 24 anos e os contactos com os Sola e com Fernando da Fonseca eram algo regulares, assim como as conversas acerca da lei de Moisés. Duas cenas concretas foram depois recordadas pelo Fonseca. Uma aconteceu logo depois que ele saiu da cadeia da inquisição de Coimbra e foi para Castela, em 1689. De Portugal levava para Madrid um carregamento de açúcar e também uma escopeta comprada em Guimarães e, passando por Benavente, foi a casa de João Dias Pereira, vendendo-lhe a escopeta pelo preço de custo.
Tempos depois, estando em Rio Seco, foi mandado por Gabriel Sola a Benavente a comprar umas trutas, com que queria “regalar” alguém muito importante. E regressando com elas, o Sola perguntou-lhe quanto gastara de hospedagem para lhe pagar. Respondeu que não gastara coisa alguma porque comera e dormira em casa de Guiomar Lopes.
Por março/abril de 1691, Gabriel Sola com a mulher, cunhada, sobrinha e seus 5 filhos, passaram por Benavente a caminho de Bragança e João Pereira foi ter com eles à pousada, levando-lhe uns doces que Guiomar preparara especialmente, “dizendo que a mulher não podia vir vê-los por estar de visita a um convento de monjas”.
Em dezembro de 1697, Ana Vilhena e o marido foram novamente presos pela inquisição de Valhadolid e de seguida Fernando da Fonseca. Obviamente que todos acabaram por culpar João Dias Pereira, Guiomar Lopes e seus familiares, antes de serem sentenciados pela inquisição de Valhadolid. (3)
Entretanto os negócios de João e Guiomar tinham prosperado e exploravam não só a venda de tabaco em Benavente, mas também o estanco de Ocaña, na região de Madrid, o de Astorga e os da província de Salamanca, que tomaram depois que Gabriel Sola foi preso. Seria um investimento fantástico, cujo montante ignoramos. Apenas sabemos que o arrendamento do estanco de Ávila montou a 12 mil cruzados – 4 contos e 800 mil réis! Para além de Ávila, a rede incluía uns 19/20 estancos que traziam subarrendados.
Parece que a “estanqueira” Guiomar não viu com bons olhos este investimento do marido e terá mesmo tentado a anulação dos contratos, a crer no testemunho de Francisco Rodrigues Garcia que, por conta de Guiomar e João, estava explorando, como subarrendatário, o estanco de Ávila:
- E na ocasião, disse a mesma que mesmo que perdesse 30 mil reais, deixava com vontade o estanco por ter medo de ser presa pelo santo ofício (…) e somente falaram que Guiomar Lopes queria ir a Madrid para tratar (desfazer) o estanco de Salamanca que seu marido havia tomado.
Obviamente que na rede de negócios de João e Guiomar trabalhavam os filhos e os cônjuges destes, bem como outros familiares, nomeadamente o meio-irmão de Guiomar, Diogo Lopes Marques e um sobrinho de João, chamado Luís Lopes Penha.
Não durou muito a situação pois que, em maio de 1702, a inquisição de Valhadolid decretou a prisão de Guiomar Lopes, do marido e dos filhos Manuel Dias Pereira e Pedro Dias Pereira. Estes, porém, já não estavam em Castela. Pressentindo talvez que fossem presos, regressaram a Portugal, passando a fronteira em Saucelhe e dirigindo-se para Lebução onde estiveram pouco tempo, logo rumando a Lisboa, estabelecendo morada na Rua das Arcas. Prova daquele pressentimento, será uma contradita depois apresentada por Guiomar:
-Também é seu inimigo Francisco Pereira, estudante em Salamanca, porquanto vindo a ré para este reino e meter na casa do dito estudante dois sacos de patacas para lhos guardar, e depois indo busca-los, achou menos em cada um 150 patacas…
Chegados a Lisboa, o filho Manuel e a sua mulher, Isabel Maria, foram Torres Novas, a explorar o estanco de tabaco que a família arrendou. Pedro meteu-se a vender pelas ruas da capital produtos da loja de seus pais. E nesta havia mercadorias tão diversas como sedas, linhos, tafetás, retrós, potes de azeite, legumes, moios de trigo, sacos de arroz, barris de goma, de pimenta e manteiga, quintais de açúcares e de erva-doce… - conforme consta do inventário de seus bens.
Se pensaram estar protegidos, enganaram-se porque a inquisição de Valhadolid mandou para Lisboa o decreto de prisão de todos eles e os respetivos processos. Tal como enviou mais denúncias, entretanto feitas por outros parentes e amigos, nomeadamente o citado Luís Lopes Penha. Em consequência, em 29.11.1702, davam entrada nas cadeias da inquisição de Lisboa Guiomar Lopes, marido e filhos. (4)
Da vivência desta gente em Lisboa, temos testemunhos contrastantes. Um vizinho fala de Guiomar dizendo que “só sabe que a dita ré, pela má condição que tinha e seu marido e filhos, os mais dias estavam a gritar uns com os outros”. Diogo Lopes Marques, também vindo de Espanha e preso em Lisboa na mesma ocasião testemunhou que ela “tinha grande condição, trato e negócios, como foi em Benavente, que era estanqueira e dava as tendas em que vendiam os tabacos e por dar a uns e negar a outros, tinha grandes inimizades, principalmente com Luís Lopes Penha, meio sobrinho de seu marido, em razão de se tirar de sua companhia em que vivia e ir para casa de um homem a quem não sabe o nome, o qual lhe veio a tirar, por ordem d´el-rei, o contrato e administração dos tabacos”. Ela própria, falando de seus inimigos e denunciantes, diria:
- Também é seu inimigo João Lopes Pereira, seu marido, em razão do mau trato que lhe dava e andar em amizade ilícita com várias mulheres e se ausentou da companhia da ré, deixando-a destruída por várias vezes, como foi na cidade do Porto e em Benavente e sempre mostrou má vontade por as pessoas fiarem mais dela do que dele.
Facto é que as testemunhas chamadas a pronunciar-se sobre a sua condição religiosa, todas disseram que era boa cristã e dava muitas esmolas aos pobres. Embora reincidente na prática de judaísmo, foi mais afortunada que os amigos presos em Espanha e relaxados: acabou condenada em cárcere e hábito e 3 anos de degredo para o Brasil, no auto da fé de 12.9.1706. Antes, porém foi condenada a tormento, no qual recebeu 3 tratos expertos, de que precisou de tratamento médico proporcionado em casa de Manuel Tavares, familiar da inquisição, que assumiu a responsabilidade de fiador. De resto todos os familiares de Guiomar que estavam presos, saíram no auto da fé de 9.9.1603. Uma referência para o seu filho Pedro que, por ter denunciado a mãe, acabou por endoidecer, no cárcere da penitência.
Notas:
1-João Dias Pereira nasceu em Madrid, sendo filho de João Lopes Penha, de Mogadouro e da sua terceira mulher, Isabel Dias, nascida em Madrid, mas originária de Lebução.
2-Gabriel Sola e Ana Vilhena casaram na ocasião em que andavam com o sambenito no cárcere da penitência, do qual fugiram. Recapturados, foi-lhe acrescentada a pena em 2 anos mais e ele foi condenado ainda a 200 açoites pelas ruas da cidade.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 2380, de Guiomar Lopes: - D. Juan de la Puebla, notário do santo ofício da inquisição de Vallahdolid certifico que estando celebrando o auto particular da fé no convento de S. Paulo desta cidade em 10.3.1701, (…) saíram no dito auto em pessoa com insígnias de relaxados Gabriel de Sola, natural da Guarda, reino de Portugal, rendeiro geral dos estancos de tabaco dos bispados de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora onde vendia e tinha os Milhones, de 56 anos; Ana Maria Conde, aliás de Vilhena, sua mulher, natural de Zamora, vizinha de Salamanca, de 56 anos: Fernando da Fonseca, natural de Sevilha, vizinho de Salamanca, tratante de açúcar e lenços, de 46 anos.   
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 530, de João Lopes Dias; pº 150, de Manuel Dias Pereira; pº 4553, de Pedro Dias Pereira; pº 4697, de Isabel Maria, mulher de Manuel Dias Pereira.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães