NÓS, TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Afonso Cardoso (n. Porto, 1570)

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Uma das primeiras famílias de judeus conversos vindos de Castela para o Porto foi a dos Baeça. Este nome seria exatamente tomado da sua terra de origem, Baeza, cidade espanhola da província de Jaen. Afonso Baeça foi um dos membros e terá vindo com os pais, bem criança ainda. Casou com Branca Cardoso, natural de Mesão Frio. (1)
O casal fixou-se na cidade do Porto, na Rua de Belmonte e vivia desafogadamente, do “trato e ofício das sedas”, com criados e criadas e numerosa prole. Isabel Cardoso, a filha mais nova e que viria a casar com Domingos Henriques, da Torre de Moncorvo, nasceu por 1557 e por essa altura faleceu Afonso Baeça.
Branca, a matriarca, viveria ainda por mais 37 anos e a sua casa ganhou “fama de rica”. Seria uma empresária de mão cheia, dirigindo uma unidade industrial de fiação de seda que “dava que fazer a 50 casas do Porto”. Em Julho de 1569 foi presa pela inquisição de Coimbra, onde purgou por 17 meses, dali saindo “sem poder mover os braços” por causa do tormento a que foi submetida.
Beatriz Cardosa era outra filha de Branca e era também casada com um homem de Torre de Moncorvo, chamado Manuel Fernandes Videira, rendeiro. Embora assistissem algumas temporadas no Porto, a residência do casal era dividida entre a Torre de Moncorvo e a aldeia de Fontelonga, em terras de Ansiães, em virtude do ofício de cobrador de rendas.
Na cidade do Porto, por 1570, nasceria um filho do casal a que deram o nome de Afonso Cardoso, o nosso biografado. E a entrada do jovem na vida ativa, seria a de ajudar o pai na cobrança das rendas. A grande maioria dessas rendas era paga em cereal que, a partir dos portos do Pocinho e de Foz Tua era conduzido para o Porto, conforme testemunho de dois almocreves que para eles trabalhavam na condução do mesmo cereal para os ditos portos.
Morando embora em Trás-os-Montes, Afonso Cardoso deslocar-se-ia com alguma frequência a Lisboa e Braga, para efeitos de arrematação das rendas e mais ainda ao Porto. E assim, alguns anos depois, o vemos feito já um “mercador de sobrado” e homem rico, arrematar a cobrança das “rendas das entradas do mar e correntes da terra” na cidade do Porto. Significa isto que a ele competia fiscalizar os produtos que entravam na cidade, vindos por mar ou por terra, e proceder à cobranças dos impostos, ou sisas, resultantes da comercialização de tais produtos.
Das estadias no Porto, resultou que Afonso Cardoso se meteu em relações amorosas com sua prima carnal Maria Cardosa, filha de sua tia materna, Catarina Lopes e seu marido João de Vilar, ourives de profissão. Maria ficou grávida e isso era uma questão extremamente humilhante para a família da moça e ofensiva dos costumes e da lei judaica. (2)
Afonso foi obrigado a casar e as relações com a família de sua mulher nunca seriam as melhores. Uma testemunha dirá que “depois de casado, não entrava em casa de Catarina Lopes e que só uma ou duas vezes, desde o tempo em que casara até ao tempo de sua prisão o vira entrar em casa da sogra, mas que saía sempre agastado”. Ele queixar-se-ia, inclusivamente, que a tia nunca lhe pagou o dote prometido pelo casamento, que foi celebrado em 10 de maio de 1593.
E se as relações com a tia e os cunhados eram tensas, muito mais ficariam depois da morte do sogro, João de Vilar, ocorrida uns dois anos mais tarde. As partilhas foram litigiosas e, a acrescentar os ódios, aconteceu um incidente envolvendo Afonso Cardoso e o seu cunhado Manuel de Vilar. Este negociara um pouco de seda. E aquele soube do negócio e foi sobre ele exigindo-lhe o pagamento da sisa. Aquele negou-se e… o resultado foi a instauração de um processo perante o juiz.
Casado à força, Afonso Cardoso não se daria muito bem com a mulher, a acreditar nas suas palavras: “tanto que ele réu não comia coisa que sua mulher fizesse, nem que viesse de casa de sua sogra”. Isso mesmo foi confirmado por várias testemunhas, uma das quais contou que “depois de casado o réu teve muitas diferenças com sua mulher e ele viu uma vez a dita mulher do réu sair ferrada na testa e o réu arranhado no rosto”. (3)
Possivelmente as desavenças foram por ele acentuadas perante os inquisidores, na tentativa de provar que as denúncias de seus cunhados eram ditadas pelo ódio. Sim que todos eles foram presos pela inquisição e todos eles confessaram que se tinham declarado com ele e com a mulher como seguidores da lei de Moisés.
Para além dos cunhados, outras pessoas o denunciaram. Foi o caso de um confeiteiro da cidade chamado Simão de Sousa que, estando no tormento, disse:
- Em outra ocasião estando ambos ao Cais da dita cidade, a propósito de ser siseiro e de virem certas naus de Flandres e dizerem um para o outro que aquelas naus vinham de boa terra onde todos viviam à sua vontade e na lei de Moisés se declararam…
A cena haveria de ser confirmada pelo próprio, nos seguintes termos:
- Estando com o sobredito e com Álvaro Gomes, cristão-novo, confeiteiro, cunhado de Simão de Sousa, entre práticas os sobreditos disseram que estavam determinados a irem para as partes da Flandres para lá viverem mais à vontade.
Mas esta confissão foi feita em novembro de 1599, quando lhe disseram que estava condenado à morte, 2 anos e 2 meses depois de ser preso, durante os quais se manteve negativo e apresentou muitas contraditas. Como esta, bem significativa do seu modo de vida:
- Nos anos de 89 e 90 andou ele réu em Trás-os-Montes, no concelho de Freixiel, arrecadando as rendas de Luís Álvares de Távora, bailio, de mandado de seu pai, no concelho de Vila Flor e Torre de Moncorvo, das muitas rendas que seu pai tinha, razão pela qual não veio ao Porto nos ditos tempos. E no ano de 90 esteve em Torre de Moncorvo doente de cama 4 meses e não veio ao Porto nesse ano. E no dia de Santiago esteve a meter a sua irmã freira no mosteiro de Monchique. (4)
A propósito da prisão de Afonso Cardoso e outros, veja-se o testemunho de Francisco Nunes Ximenes:
- Disse que foi preso na cidade do Porto a 16 de agosto de 1597 e no aljube desta cidade esteve alguns dias e ali esteve com 18 homens entre os quais nomeou os Vilares e seu cunhado Afonso Cardoso e Francisco Lourenço e estavam numa casa de baixo e em cima estavam as mulheres que também estiveram presas.
Resta dizer que Afonso Cardoso saiu no auto de 19.12.1599, condenado a “cárcere e hábito irremissível e leve no auto hábito com fogos, visto o tempo em que confessou depois do assento” onde estava para ser relaxado.
Com ele saiu também sua mulher e ambos puderam regressar ao Porto e cuidar de seus 3 filhos (o mais velho de 5 anos) em junho de 1600, depois que a pena lhe foi comutada por “uma esmola de 200 cruzados”. O hábito, porém, só lhe seria tirado em janeiro de 1603, em cerimónia realizada em Coimbra.

Notas e Bibliografia:
1-Mesão Frio foi das primeiras terras a sofrer a investida da inquisição, a partir de uma visitação feita em 1542 pelo bispo do Porto, o inquisidor D. Baltasar Limpo.
2-IDEM, pº 2736, de Afonso Cardoso: - Disse que Catarina Lopes era inimiga do réu porque ele tivera conversação carnal com sua filha e a desonrara e ela pariu dele antes de recebidos e por ver sua filha desonrada, Catarina os casou à força.
3-Maria Cardosa foi presa em Vila Flor, em Maio de 1599. Metida na cadeia de Coimbra, por 5 vezes foi a tormento. Um bilhete que lhe apanharam, enviado a outros prisioneiros, dizia o seguinte: - Vossas Mercês me farão mercê de saber de Fernão Lopes, do Porto como está de seus negócios porque o pergunta sua irmã, por ele. Nosso Senhor nos livre a todos, como pode. – ANTT, inq. Coimbra, pº2993, de Maria Cardosa.
4- A propósito do mosteiro de Monchique, veja-se esta informação bem interessante para o estudo do judaísmo na cidade do porto. Foi tirada do processo 2576-C, de Luís da Cunha: - Disse que haverá 4 ou 5 anos no pátio do mosteiro de Monchique, se encontrou com João de Leão, que vive à Fonte Ourina, e com ele estava Francisco Paulo, cristão-novo, o romano de alcunha, que agora vive em Ciudad Rodrigo,  e é destilador,  e por ocasião de ver um letreiro em língua hebraica  que está em uma parede  do dormitório  da banda de fora,  que se vê do dito pátio e o dito Francisco Paulo o ler e explicar por saber a língua hebraica,   e dizer que aquela pedra fora de uma sinagoga  segundo o letreiro mostrava.
 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães