Não está fácil ser pobre

PUB.

A pobreza é estado que, no decurso do tempo, tem sido entendida das mais variadas formas, chegando ao ponto de se considerar legítima e até necessária. Deste modo, permitia-se aos ricos dar esmolas e partilhar bens de primeira necessidade em troca de um lugarzinho no céu. Nesta perspetiva, os pobres existiam para a salvação dos ricos. Tal prática não está assim tão distanciada no tempo pois, não me considerando tão velho quanto isso, ainda me lembro ouvir os pobres pedir “um bocadinho de pão por alminha de quem lá tem”. Na arte de bem pedir, havia alguns que, de tal forma tinham aprendido a lição que, atrás do pão, ia a carne e ao lado desta as batatas e mais alguma coisa das fartas casas de lavoura. Estes, os mais pobres entre os pobres, não se demoravam muito em cada lugar e, normalmente, a sua passagem era associada ao roubo de qualquer coisa menor. Já ninguém levava a mal e, muitas vezes o ofendido perdoava em troca de um facto capaz de quebrar a rotina dos dias.

Havia outros mais sedentários. Ajudavam nos trabalhos da terra, iam buscar água à fonte e “davam uma mão” naquilo que fosse necessário. Estes tinham um estatuto quase familiar. As portas das casas mais abastadas estavam sempre abertas para eles. Quando se fazia o almoço ou o jantar, punha-se sempre mais um ou dois quartilhos de água no caldo ou coziam-se mais umas batatas a pensar nessa gente. Dava gosto vê-los comer e, quando tinham filhos pequenos, mal os “patrões” acabavam de jantar, era uma alegria ver aquela chusma de garotos entrar na cozinha, pegar nos pratos que tinham ficado na mesa e encher a barriga do que sobrou. Eram pobres mas felizes e socialmente aceites, em troca do suor, de um cesto de verga ou de uma dúzia de agulhas feitas de varetas de chapéus-de-chuva em desuso.

Os tempos mudaram e os hábitos também, tornando a pobreza limpa e arrumada. Talvez os ricos tenham aprendido a salvar-se de outro modo e os pobres institucionalizaram-se passando a estar sob a tutela de organizações que, com recursos limitados, tratam deles. Mas neste mundo que nos habituamos a olhar como se todos fossem iguais, há ainda os pobres dos mais pobres. Aqueles que continuam a vaguear pelas ruas e a estender a mão já não à porta das igrejas – até nisso tiveram de se adaptar – mas nos estacionamentos e nos centros comerciais. Como a área é maior, há pontos de fuga por todo o lado para quem não tem paciência. Os das corridinhas marotas encetam percursos entre as viaturas, num jogo de esconde-esconde com os sacos a denunciar a presença. Há também os de olhar complacente que fazem um pequeno desvio como se fossem incomodados com aquela presença de pobre, mas apenas um bocadinho; esboçam um sorrisinho, olham de ladinho e seguem o seu caminhinho. Mas o fascínio vai para os que, destemidos, não se afastam nem um milímetro: convictamente seguros de si avançam prontos a enfrentar aquela figura sem vida no olhar, a estender a mão e a suplicar por uma moedinha que lhe salve o dia. “- Só uso cartão” – dizem com ar sorridente, olhando o pobre olhos nos olhos mostrando assim quem manda ali. Estes cada vez são mais. Por este andar, dentro em breve, cada pobre vai ter de andar com um terminal multibanco e de preferência com todas as opções: Visa, Electron e todos os que desconheço com toda a certeza.

Também já me apercebi que as campanhas de solidariedade já não são o que eram: ou o processo decorre todo no mesmo sítio ou tem de ser uma daquelas on-line, onde basta um clique para tudo ficar despachado. As que continuam a apostar no cartaz com pontos de recolha estão votadas ao fracasso. Já não há quem esteja disposto a agarrar no produto e fazer alguns metros que sejam para a entrega. Os que ainda se identificam com a causa acham maçudo, os que não estão para se ralar consideram um exibicionismo promover cenas destas. Porém, quando ainda há uma centelha de consciência e se olham os pobres através do prisma da caridade cristã (desconheço se poderá existir outra), por vezes, há quem entregue uma nota e permita saciar a fome de quem não tem nada. É que os tempos mudam, a fome mantém-se e ninguém é pobre porque quer.

Há pobres e há pobreza. Há aquela onde o contributo individual não chega a ser uma gota que sacie seja o que for, mas há outra onde basta um sorriso ou um olhar empático que faz toda a diferença.

Pode não se ser religioso nem ter valores que potenciem a realização das obras de caridade em séculos anteriores tão apregoadas, mas se todos somos humanos, que seja esse o princípio do fim da pobreza que vive ao lado de cada um.

Raúl Gomes