Abril abril

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A democracia, que por estes dias festejamos, surgiu no mundo como uma flor da civilização, joia rara entre o cascalho da marcha da humanidade. Por imperfeita que seja, e ainda que outros benefícios não tivesse, a licença de sob as suas asas se dizer o que se pensa e sente sem medos (essa mesma que aqui estou a usar) já seria preciosa. E a que consiste em indicarmos quem nos há de governar mediante um gesto secreto não o é menos, mesmo que existam reservas quanto à sua efetividade. Ambas são dádivas, tanto mais admiráveis quanto é certo terem surgido por sobre o sacrifício de incontáveis gerações, flageladas durante milénios por toda a sorte de tiranias e sob o fogo constante da repressão de mentes e corpos.
Num mundo perfeito as suas regalias durariam para sempre mas, se pensarmos que sobre elas pesam ameaças de vária ordem, há poucas garantias de que tal aconteça. A primeira talvez advenha de, por terem passado a ser tão banais, tendermos a não lhes dar valor, sempre mais ciosos de direitos que de deveres, mais zelosos de liberdades que de moderações, mais solícitos a assegurar garantias que a admitir e acolher incertezas. Daí termos tolerado que aos poucos a democracia viesse a ser gerida por medíocres que se aproveitam das suas fraquezas, que em vez de a servirem porfiem intentos que lhe são alheios, em lugar de a visarem como um fim se convertam em fins a si próprios.
Sabendo-a tão frágil como a própria sociedade, e tendo tudo a ganhar com ela, estimo-a de coração (talvez como só quem viveu em ditadura a saiba estimar) e permito-me gozar de todos os seus prazeres. Mas daí a que todos sintam o mesmo vai um abismo: quando se é muito afeiçoado a mordomias vive-se no receio contínuo de as ver talhadas; a fazenda traz sempre o secreto temor de a perder. Em tal estado de espírito, o mínimo transtorno da ordem ou brisa de mudança constituem fonte de anseio, sendo muito provável até que as regularíssimas eleições assomem de quando em vez como motivo de inescapável incómodo. O que se entende. Porque no fundo, no fundo, isto de ter dado a soberania à plebe foi muito generoso, muito bonito, muito poético, mas não deixou de comportar os seus óbices. Afinal de contas, sabendo-se da volubilidade, dos humores, dos caprichos dos eleitores, quem pode dizer o que trará o amanhã?
Ora é justamente esta indecisão própria dos ciclos democráticos que leva muitos a torcerem-lhe o nariz. É certo que, para assegurar o poder que faculta e protege proventos, se vai participando ativamente nas suas estruturas formais, tem que ser. Porém, de modo a acautelar surpresas não se pode descurar a possibilidade de jogar o xadrez noutros tabuleiros, assim como quem lança um olho ao burro e outro ao cigano. Faz-se jogo limpo enquanto este nos é favorável, mas a bola é redonda e o resultado sempre incerto. Que bom não seria poder mudar as regras a meio, caso estejamos a perder, sobretudo quando há muito a perder… Nada mais natural então do que fazer um nadinha de batota criando e ativando grupos esconsos (cujos sócios podem à luz do dia aparentar mesmo ser opositores) para mover na sombra os cordelinhos. Ou não fosse o dinheiro um instrumento privilegiado das maquinações do belzebu!
Se buscarmos alguns princípios da coisa democrática, eles não andarão muito longe do acolhimento da diversidade de interesses, da abertura aos outros e ao diálogo, da troca de ideias, do confronto aberto, da negociação benevolente, da humildade para a cedência, do sim à crista-da-onda e à mó-de-baixo, da sabedoria na derrota como na vitória, da serena aceitação das incertezas. Os mesmos que propiciam uma instância cívica, a democracia, onde nenhum saber, propósito ou atividade humana poderiam ser estranhos ou tabus, incluindo mesmo aquilo que a põe em causa. Onde toda a ação privilegia a abertura, não o fechamento, e por conseguinte se deseja impregnada de convicta e honesta transparência.
Em suma, tudo aquilo de que esses furtivos clubes, por mais que se reclamem de aperfeiçoamentos, fraternidades e coisa e tal, são a própria negação. Isto sem prejuízo de admitir que haja quem, sem a clara noção destas mundanas subtilezas, se lhes possa juntar somente por retirar prazer de algum sombrio gosto da camuflagem ou de exclusivismos snobes.

Eduardo Pires