“A maior parte das pessoas não tem formação para ver futebol”

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Ter, 28/01/2020 - 12:30


David Dias tem 29 anos e é árbitro, nos tempos livres, há 5 anos. É natural de Barcelos mas está a viver há uma década em Bragança e é por cá que quer ficar. Arbitra jogos da distrital e é candidato a apitar jogos do nacional.

Porque decidiu ser árbitro?

Não foi uma decisão tomada de livre vontade por mim. Foi um amigo que chegou à minha beira e disse para irmos tirar o curso de árbitros. Eu disse-lhe “não, tu és maluco” e acabou por me convencer e ainda hoje sou árbitro.

Quais foram as situações mais desagradáveis por que já passou?

Insultos é o dia-a-dia. Mas uma pessoa já está habituada. As situações mais desagradáveis que passei foram com treinadores. Tivemos discussões mais acesas, porque eles tiveram comportamentos menos adequados. Mas os adeptos também não ajudam… Não. A maior parte das pessoas não tem formação para ver futebol. Isto é ponto assente em Portugal. Não conhecem as regras, partem para o insulto facilmente e a partir daí o clima deteriora-se dentro e fora de campo.

Como se gerem essas situações?

Muitas vezes mostrando a autoridade dentro de campo, com cartões, outras vezes ensinamos as pessoas que participam no futebol e há situações que não adianta. Não há uma fórmula exacta, o que funcionou hoje, no jogo a seguir pode não funcionar e pode até correr muito mal.

Mas é difícil gerir as emoções?

Muito difícil. 90% das vezes temos que engolir em seco e o que nós queremos é também expor o que sentimos. Às vezes é frustrante estar a levar com tudo em cima, toda a gente a olhar para nós e não podermos fazer nada.

Quando fazem o curso são preparados para este tipo de situações?

Não há como preparar isto. Nós vamos vivendo dentro de campo e adaptamo-nos ou não nos adaptamos. Uma vez adaptados, a maior parte das coisas que acontecem fora do campo já nem ouvimos. A maior parte das frases que as pessoas ouvem, inclusive insultos ao árbitro, nós ignoramos, já é normal.

Quando vai arbitrar um jogo importante para o campeonato distrital há uma pressão ou nervosismo por poder cometer algum erro?

Nervosismo há sempre, seja num jogo forte ou mais fraco. O que nós tentamos fazer é preparar o jogo. Por exemplo, o jogo dos seniores é no fim-de-semana, às três da tarde, o nosso jogo começa há quinta-feira quando recebemos as nomeações.

Por vezes pensamos que o árbitro apenas apita o jogo e está feito, mas há toda uma preparação…

Sim, desde logo temos que preparar as fichas de jogo, depois estudamos a equipa da casa e de fora e qual é a sua posição na tabela. Esse tipo de coisas temos que saber.

Quando é que um árbitro está realmente preparado para arbitrar um jogo?

A partir do momento que é nomeado. Qualquer pessoa que está na arbitragem e gosta, como é o meu caso, está sempre ansiosa que chegue a quinta-feira para saber qual é o jogo que vamos fazer. Nós na verdade estamos sempre preparados para fazer os jogos…

Há histórias que gostaria de nos contar?

Uma situação engraçada foi uma vez que arbitrei um jogo, ainda na formação, e uma equipa estava a ganhar por mais de 20 golos. Na formação conta tudo, menos o resultado. Eu apitei para o fim do jogo, mesmo no tempo certo, não dei tempo de compensação nenhum e tive o treinador da equipa que estava a ganhar a chatear-me a cabeça em frente aos miúdos, sem dar formação nenhuma àquelas crianças. Isto porque queria marcar mais golos. Ele estava a ensinar o errado às crianças, pois o resultado não interessa. O que ele devia ter feito era pôr a equipa a jogar, sem querer saber do resultado. Foi das situações mais estranhas que tive até hoje, num jogo de infantis. Arbitra também os jogos dos mais pequenos.

Não sente que, por vezes, são os pais que geram alguns conflitos e as crianças acabam por crescer naquele clima?

Não só o árbitro, mas também o treinador. Não há Cristianos Ronaldos em todo o lado. A maior parte dos pais pensam que tem um craque em casa e têm só uma criança que quer fazer desporto. E a pressão que colocam nos miúdos, o insulto que fazem aos outros miúdos, que os pais dos outros miúdos ouvem, depois gera problemas na bancada. Uma criança ouve tudo aquilo e não sabe gerir isso dentro de campo.

Sente que há falta de fairplay?

Sim, muita. Por incrível que pareça, nos seniores, embora seja algo mais competitivo e mais importante, existe mais fairplay entre os jogadores. Acho que há muita falta de fairplay e é devido aos treinos e à educação que vem de casa.

Os árbitros, tal como toda a gente, também têm favoritos. Como é colocar isso de parte e ser imparcial?

É muito fácil. Não há nada pior do que estar num jogo, ter tomado uma decisão e segundos mais tarde percebermos que a decisão não era a correcta. A pressão e a angústia que sentimos não vale a pena para favorecer quem quer que seja. Não compensa.

É um dos árbitros candidato aos nacionais. Isto exerce outra pressão e responsabilidade?

Acima de tudo responsabilidade, porque não posso faltar aos treinos, não posso faltar às formações, tenho que estar preparado para o que possa vir, porque o nível é completamente diferente e o grau de exigência. Nós não podemos falhar.

Caso consiga, como será esta nova fase?

Acima de tudo vai ser desafiante e espero que positiva. Irei ganhar muita experiência, corra bem ou mal. Vai ser um orgulho porque eu aprendi a gostar da arbitragem. E que gosto é esse pela arbitragem? É uma desculpa para fazer desporto e eu sou uma pessoa que gosta de futebol, portanto é também uma desculpa para estar perto. E é um desafio. Cada jogo é um desafio. Quando temos os chamados “jogos bons”, treinamos para esse momento. A arbitragem é sempre um desafio.

Também vos reconhecem o devido mérito quando fazem um “bom jogo”?

É raro acontecer, mas sabe bem ouvir, principalmente da parte dos jogadores e dos treinadores, porque os adeptos nem percebem muitas vezes as decisões que tomamos. Há decisões que tomamos que são difíceis de explicar para o exterior, porque muita gente não sabe as regras. Mas sabe bem quando tomamos uma decisão e quando uma pessoa admite que a nossa decisão foi a mais correcta.

O árbitro sempre foi o mau da fita?

Depende. Há situações que eu continuo sem perceber como é que erros podem acontecer, principalmente ao mais alto nível, com decisões erradas no VAR. Mas há outras, que eu antes não compreendia a decisão do árbitro e hoje em dia ponho-me no lugar e penso “naquele sítio, aquela jogada, àquela velocidade, não é tão simples perceber”.

Alguma vez pensou em desistir?

Já. Quando percebi que me podiam estar a cortar as pernas e isso é muito frustrante. Há dias que uma pessoa sai de casa, estamos no jogo e pensamos “a sério que eu vim ganhar este bocadinho para aturar isto?”. Há dias em que não compensa sair de casa. Mas depois chega à terça-feira, que é o dia do treino, e eu estou no treino e pronto para apitar no fim-de-semana.

Quando é que será o fim?

Todos os fins-de-semana penso quando será o fim, mas não tenho uma data definitiva. Muitas vezes digo que vou deixar a arbitragem, mas quando penso mais a sério na decisão, penso que se calhar não vai ser agora.

Jornalista: 
Ângela Pais