Bons dias, meus caros. Que estas palavras vos encontrem bem de saúde e devidamente abrigados do frio. Para ásperas gargantas tocadas por cortantes dias e geladas noites recomenda-se um chá bem adubado com cenoura, cebola e alguns dentes de alho. Uma espécie de micro- -caldo servido em chávena temperado apenas com uma ou duas colheradas de bom mel caseiro. Receita muitas vezes provada (de má cara e um tanto ou quanto à força) e comprovada por este escriba, e um dos inúmeros aproveitamentos das propriedades do alho. Aqui perto de mim há um restaurante particularmente frequentado pela classe operária, nomeadamente por trabalhadores da construção civil. São quem realmente faz a China. Não são os ideólogos nem mandantes, nem as classes médias e altas que quanto mais sobem mais se fazem depender das bases para as servirem e para lhes tornarem os dias mais fáceis e à medida das suas vontades. Quem faz a China que se vê hoje são todos os trabalhadores migrantes que deixam os seus para trás e estacionam numa obra o tempo que for necessário até que fique pronta e cujos direitos numa outra província mudam tanto ou mais como se tivessem emigrado para outro país, os que a todo o segundo levam e trazem comida e encomendas de motoreta ou carripana, os senhores e senhoras cantoneiros, electricistas, canalizadores, amas e mulheres-a-dias de todos os incansáveis dias da semana. De todos estes, e de muitos outros, destaco os homens da construção, enrugados e tisnados do sol e do pó que ao fim do dia se dão uma lambidela de água e se juntam em magotes, sentados em cima dos próprios capacetes das obras a fazer de banco, de cigarro ao canto da boca, a atacar algum caldo de hortaliça ou alguma talhada de melancia, trocando dois dedos de conversa ou simplesmente vendo passar os minutos que o sol leva a cair e o céu a descolorar- -se. Fonte de diárias e peculiares exposições fotográficas, mesmo aqui ao lado, para quem seja versado nas artes fotográficas. E agora, atenção que lá vai alho. O alho vai no tal restaurante em que cada mesa está apetrechada para quem goste – além dos frascos do tradicional e local jindungo e do molho de soja – com uma pequena malga cheia de dentes de alho soltos e por descascar. Dos dentes de alho à mesa da classe operária de hoje podemos viajar até à primeira greve da história feita por trabalhadores das pirâmides egípcias precisamente por lhes ter sido retirado o alho da alimentação diária em ano de má gestão das colheitas. Fazendo um esforço por evitar cair na tentação da Wikipédia e efectuando um périplo por sites com alguma fidedignidade, fui dar a um livro chamado “Alimentos com História” onde se pode ler que os egípcios acreditavam que o alho tinha até poderes sobrenaturais ou mágicos e que aquando da abertura do túmulo de Toutankhamon foram encontrados feixes de alho entre os tesouros destinados à transcendente viagem. Na Antiga Grécia atribuíam-lhe semelhante devoção, Homero serviu- -se de alho para que Ulisses se defendesse de pragas e encantamentos, os atletas usavam-no bastante no decorrer dos Jogos Olímpicos. Com o Império Romano o consumo de alho prosperou e era considerado, segundo o poeta Virgílio, “essencial para manter as forças dos soldados e dos homens que trabalham no campo.” Dos tempos das pestes negras do medievo persistem semelhantes mitos ou lendas, por exemplo em França e Inglaterra, de que famílias se terão salvo devido a confinamentos com abundante provisão de alhos. Ainda agora nesta pandemia também houve quem destacasse (e descascasse) os seus atributos preventivos. Toda uma história de íntima e constante relação entre um vegetal e a humanidade numa dicotomia trabalhadores-dentes de alho que continua actual e vigorosa. Alguma coisa há-de ter esta planta para ter andado sempre à mão de semear. E para tal, dizem os antigos que a melhor altura é o advento, algures por esta época do ano: “No Natal semeia o teu alhal”. Para os que já trataram da sementeira, que a colheita se avizinhe boa, para quem colhe do supermercado que não lhe falte alho para fazer companhia ao polvo e ao bacalhau que não se querem solitários na travessa. Atravessemos o que falta deste ano que não está para tradições e tenhamos esperança que o próximo não venha tão alheado. Aqui não há Natal, que é um dia tão útil como os outros, embora por esta altura se assinale também uma das maiores festividades da cultura chinesa na qual as pessoas se juntam para celebrar a chegada do Inverno. Traduzindo o nome é mesmo “Festival do Solstício de Inverno” em que os membros da família se reúnem e ao longo da noite vão fazendo e comendo uma espécie de raviolis com diferentes recheios e com o alho como ingrediente de destaque. Nós humanos chateamo-nos por causas das nossas diferenças, das identidades, das religiões, das politiquices, mas o que nos conduz é a verdadeira natureza. A nossa natureza, a natureza que nos doma, que nos apequena e iguala, contra a qual pouco podemos e da qual absolutamente dependemos. As fases da lua, o sol, da água, as plantas que nos acompanham, as limitações do nosso ser. A Natureza que nos ensina, com a qual aprendemos e sobre a qual transmitimos intergeracionais conhecimentos. Por entre esta original humanidade que nos une e que vive connosco embora por vezes não a consigamos ver de tão ocupados e distraídos que andamos, um grande e intercontintental abraço de amizade e consideração. Que o espírito natalício inspire o que há de melhor na natureza de cada um e de todos nós. Feliz Natal onde e como quer que te encontres. Não te esqueças de que continuamos juntos. Saúde!