Chega de fossa nova

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Boas tardes, meus caros. Parece que as notícias têm sido mais animadoras e isso é de saudar. Que a primavera nos traga calor e mudanças para melhor. Vocês sabem que eu sou cada vez mais um estrangeiro na maneira como vejo o país, não é fácil levar uma vida minimamente ocupada em GMT+8 e ir acompanhando todas as vicissitudes do que se vai passando aí dentro. De maneira que aos poucos me vou metaformoseando num desconhecedor do meu país, que vai sabendo dele muito au ralenti. Algumas coisas têm-me chegado através da rádio, agora que se pode ligar o rádio em qualquer lado. Ainda no outro dia ouvia a história de um artista que começou a ouvir música com o rádio do avô, à volta do qual se reunia toda a aldeia, porém, o rádio era ligado unicamente ao domingo à tarde “para não gastar muita pilha”. Outros tempos, outros sofrimentos. Uma coisa que tenho vindo a notar recentemente é que a música que se tem feito em Portugal anda muito diferente, pelo menos a pouca que me vai chegando. Tudo são musiquinhas moles, envergonhadas, tudo muito acústico, mas onde até o eletrónico não quer incomodar os vizinhos, letras curtinhas, cansadas, umas vozes que não queriam ter sido arrancadas da cama, artistas que se expressam pelas vestimentas, mas em que depois as gargantas só conseguem lançar aquela expressão muda, seca, palavras mal saídas a quererem voltar para dentro, botadas em modo meloso, pegajoso como o álcool que escorrega das garrafas vazias espalhadas pelo chão da sala. Tudo soa a uma mesma Adriana Partimpim sem forças, empurrada para a frente de um microfone por recomendação e insistência do médico-psiquiatra, tudo meio imberbe, inacabado. Eu sei que a música é expressão do seu tempo e estes não são tempos nada comuns, também sei que para destilar descrença e abissal tristeza somos os primeiros, mas já é hora de começarmos a mudar um bocado o registo. Agora que vem o sol e a primavera, é uma boa oportunidade para desconfinar a música portuguesa, sair de casa, tirar o pijama borbotado de quinze dias, passar uma água pela cara e ir ver o mundo, apanhar um bocado de vitamina D e saborear uma esplanada. Já cansa esta ladaínha cantada por favor que faz o fado parecer Carnaval e em que tudo parece ser uma bossinha nova portuguesa extraída lá do fundo da fossa, uma autêntica fossa nova. Vamos sair da fossa, variar o registo, voltar a pôr as guitarras a rasgar, umas letraças daquelas, as bandas a justificar o aplauso feroz. É tempo disso, vamos voltar com força e desligar o modo abatido, desgostoso e agridocinho. Pimbalhada, rockalhada, martelada, metalada, popzada, venha tudo o que traga vida, sangue, decibéis. Tragam de lá o façam barulho e enfiem os “violões” e as violazinhas no saco. Por exemplo, as músicas do festival da canção têm sido uma tristeza, na mais literal acepção da palavra, no sentido de serem tão tristes e soturnas que até as pedras da calçada ficam a pensar se de facto não seria melhor cimentarem os passeios todos e irem desta para melhor. A gente às vezes até quer gostar destas músicas, mas nem consegue de tão apagadinhas e insuficientes que são. É imperativo levantar o estado de emergência da música portuguesa porque ela precisa de nos levantar a moral. Já não queremos esta música-ansiolítica, queremos algo com vida, com raiva, queremos os pés de dança, o salto, o golo, o orgasmo, o pontapé na atmosfera. Queremos música! Queremos a música portuguesa a gostar dela própria e não a música portuguesa a matar-se a ela própria, a desistir de si própria. Bora, música portuguesa, acredita em ti, tens tanta gente que te quer bem, salta da cama, anda viver meu amor que o sol está lá fora à espera de te ouvir cantar. E não nos venham com fatiotas nem outfits, tragam-nos música, queremos vibrações e variações, mas dispensamos esses palquistas quarenta-anos-depois que só têm a arte do guarda-roupa e da maquilhagem para mostrar. Queremos o antigo, o moderno, o revisitado e futurista, os agudos e os graves, sintonias de gritarias, sintetizadores e distorcedores, oboés e bués jambés, gaitas e guitarras, a vida nuns sopros, o bate-coração das baterias, cordas bambas e vocais, pandeiretas, palhetas e baquetas a bater nas mesmas teclas, quem canta seus males espanca, xilofones, saxofones, estar nos concertos e vê-los através dos telefones, castanholas portuguesas, carrilhões, apitos e berimbaus, queremos ir para cima das colunas, cabines de som e pregos no prato quando cai a noite na cidade, cornetas de pistões e órgãos de soberania, a cauda dos pianos com a vara dos trompetes, caminhos de ferrinhos e triângulos de bermudas, o atabaque faz bem à saúde e contrabaixos não há argumentos, ponham a boca no trombone nesta noite de açucenas, venham de lá os címbalos a chocalhar e as hormonas da harmónica, é uma guitarra portuguesa concertinas, o estradivários está tantã desde que a rabeca se foi embora, a ver se vejo o realejo e o alaúde em Mafamude, os pandeiros são os primeiros, venham de lá os bombos da festa, queremos o lirismo das liras e o herpes das harpas, as mãos nas flautas e sanfonas, faça chinfrim o bandolim, acordem os acordeões, ponham-se finos os violinos… e todos juntos vamos em fanfarra bater à porta da música portuguesa e arrancá-la de casa, da fossa em que se enfiou. A fossa nova já foi chão que deu uvas. Não queremos essa coisa entorpecida, quebradiça, sem coragem. Queremos as nossas músicas, a nossa música de volta. Precisamos da intervenção da música, da vida que ela tem e da vida que nos dá. Renasce a música e renascemos nós. Precisamos todos de renascer já!

Manuel João Pires