Bom dia, terra quente, nesta altura não há por aí terras frias, pelo menos antes de o sol se pôr. Como vão esses fins de tarde? Espero que muito bem. Ora, peço desculpa mas hoje dentro deste pequeno rectângulo mando eu e daqui ninguém me tira. Como nos tempos de infância quando nas férias se formavam equipas para passar as tardes em modo “roda, bota, fora” dentro de um ringue de futebol, havia sempre alguém que se negava a aceitar as convenções da derrota e se aproveitava do facto de ser dono do esférico para usar o trunfo do “a bola é minha ninguém joga” e assim não ter de sair do campo. De modo que hoje é à Lobo Antunes, as minhas tias, os meus avós, as criadas e o que tinham para ensinar a cada novos imberbes varões, o empregado corcunda do café com o bigode amarelecido do cigarro, as velhas de Lisboa aperaltadas avenida acima, avenida abaixo e o alferes miliciano que ainda hoje jaz em palhas de capim deitado, velado num presépio de seringas trémulas de morfina, unimogues de patas ao ar, soldados cheios de surro e os sacramentos atropelados do capelão. E com António nos perdemos no emaranhado dos seus dédalos interiores e nos seus mundanos finos reparos de escritor como se os leitores fossemos o álcool desestimadamente tragado ora para esquecer ora para solenizar tudo isto. A minha tia Inês foi a primeira de uma enchente de filhos. Aquilo que agora se diria ser uma família numerosa, mas sem a chiquesa a que hoje soa nem os descontos a que dá direito. Os mais velhos tratavam dos mais novos numa empresa que se organizava a si mesma segundo normas estritas e bem definidas e cujo CEO marcava o compasso da organização e por vezes o passo à entidade familiar sem grande margem para sugestões ou sindicalismos. Lembrei-me da minha tia Inês por um texto que li sobre a temática do feminismo. Hoje faz-se tanto ruído sobre alguns assuntos que quase viram entretenimento e é triste que, apesar de tanto falar e aludir, a sociedade pouco mude e cada vez mais andemos como o gato e o rato. Uns irados contra os outros, a esgrimir palavras nos computadores e nos telemóveis, de tal modo que parece que o que move os ânimos das pessoas para estas batalhas é cada vez mais o jogar este jogo do “tu cá, tu lá”, o aparecer para “mostrar que assim se defende e assim se ataca”, quiçá vincar o ódio por quem está do outro lado da barricada. E todo o discurso é praticamente só teórico de parte a parte, centrado nas ideias, nas concepções, no histórico-social, mas em que o “fazer” quase não ocupa lugar. Não se diz às pessoas, mais que tudo, o que é que cada um de nós deve fazer enquanto cidadão, pai, filho, estudante, trabalhador, aposentado, etc. para efectivamente superar estas lacunas, melhorar a comunidade e a interação social. Pouca ou nenhuma atenção se dedica a cultivar nas pessoas o “fazer” ou o “saber fazer”, o que diz muito da vacuidade não destas batalhas, mas sim da maioria dos seus batalhadores. A acção e sobretudo a interacção, a abertura ao outro são aspectos que urge promover numa sociedade cada vez mais segregada e extremada e que infelizmente parecem não ser sequer tidos nem achados de forma concreta no “diálogo” sobre estes assuntos. As palavras já me trouxeram até aqui mas eu vim para falar da minha tia Inês e sobra-me já menos espaço. Mulher de decisões sólidas e gargalhadas fáceis – e de palavrão fácil também, para o qual as décadas de Porto certamente terão contribuído – que passou por tudo aquilo que de agreste e de genuíno teria por que passar quem no começo dos anos 40 nascesse numa aldeia raiana do nordeste trasmontano, recém-tocada pela guerra civil espanhola. Fez medrar irmãos e filhas, esteve uns anos sem o marido emigrado, mais tarde deu ainda guarida a meus pais na época em que os pés descalços de Gabriela colocavam o país em suspenso e o prendiam ao televisor na hora de jantar. Mas a história que a ouvi contar e que me veio à memória a propósito do feminismo foi a de que na adolescência alguém lhe ofereceu um par de calças, mas o meu avô não lhas deixava vestir. Calculo que terá sido entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Nisto chegou o dia do baile da aldeia e também estava proibida de ir talvez porque andasse já a namoriscar. A moral da história é que a tia Inês arranjou forma de se escapulir e não só foi ao baile como fez questão de ir a presumir as calças novas. Ela sabia que o after-party não seria pêra-doce, como de facto não foi, mas ficou a atitude e a personalidade. Não era ser-se feminista, era só ser-se jovem com uma grande dose de coragem e de juventude. A minha tia também era Maria, Maria Inês, eram tempos de velhas cartas, “Três Marias”, quatro, cinco, na verdade eram todas Marias, mas sem hashtags. É verdade que as conquistas hoje não são tão perceptíveis como já foram no nosso país. Actualmente é preciso escavar mais para se encontrar uma causa. Antigamente bastava vestir umas calças ou querer ir ao baile. Por isso mesmo, embora sendo mais seguro, ser feminista em Portugal é hoje uma tarefa mais árdua, combativa. Creio, no entanto, que sem acção as mensagens não passam, as coisas não se alteram substancialmente. Os crimes passionais e a violência doméstica têm aumentado nos últimos anos, mas os direitos sociais não se alcançam só com teoria, conferências ou publicações. Por isso, em vez de se tornar o tema numa troca de inflamadas flechas ou numa medição elitizada de eloquências sem grandes efeitos práticos, viremo-nos para as pessoas comuns, ensinemos a fazer, eduquemos para a acção e para a interação. Não é preciso teorizar muito para se tomarem atitudes. Quanto à minha tia Inês, os seus olhos claros quase transparentes apagaram-se há dois anos, mas as suas vivências contadas entre gargalhadas andarão cá por mais uns tempos. E algumas delas também acabam por fazer parte da nossa história. Obrigado, tia Inês.