A infantil idade

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Bons dias, forte gente. Espero que vos encontreis bem de saúde. O vírus vai esmorecendo, mas não esmorecem os problemas com que o mundo se descose e se esfarrapa. São tempos inusitados de emoções despidas em que nos revelamos nós, se revelam as sociedades e ressai também a inépcia de muitos corifeus desgovernados que governam grandes porções deste planeta. Recentemente ocorreu mais um recorrente episódio em que se avultou algo que nunca deixou de estar presente, os desequilíbrios raciais nos EUA. Um país onde a segregação racial sempre foi regra e que se vai libertando disso com muitos tabus pelo meio, muito estigma e desconfiança e com as nefastas consequências sempre a pender sobre os social e economicamente mais desfavorecidos. Tudo muito complexo e muito estado- -unidense para poder ser explicado em tão pouco espaço. Por exemplo, para nós a Beyoncé é a Beyoncé, uma estrela pop à escala mundial. Nos EUA a Beyoncé é uma estrela pop afro-americana, sempre com este sublinhado. Quando lá estive e o noticiário dava a notícia do seu concerto, apresentador e jornalistas faziam sempre acompanhar afro-americana de cada vez que pronunciavam o seu nome. Não sei se é por uma questão de discriminação positiva, para destacar que entre os afro-americanos também há celebridades mundiais e não apenas indigentes. Mas por outro lado parece estar- -se sempre a rotular ou a reduzir a pessoa à sua origem ou cor da pele. É estranho e desconfortável, mas é assim que fazem, para não dizer que lá, apesar de tanto afro, tanto brancos como pretos pouco ou nada sabem sobre África, já é uma sorte se souberem que não é um país. Aqui tenho um grande amigo dos arredores de Nova Iorque que me perguntava quando nos conhecemos se na Europa os brancos interagiam assim à vontade com os pretos. A dimensão e as implicações da exclusão social e racial, mesmo havendo realidades delicadas no nosso país, é um pouco difícil de perceber e até de conceber à luz da nossa forma de viver e fazer as coisas. Tal como é o faroeste do armamento na sociedade ou a polícia americana, agressiva, descerebrada e aparatosa como para nós é suposto as polícias não serem. Mas na verdade eu queria falar da infantil idade e de livros para crianças. Há uns meses tinha encomendado uns livros para a minha filha que só me chegaram agora depois destes meses de nevoeiro. Curiosamente são três livros intitulados “I am...” que explicam muito bem às crianças a vida de três figuras históricas afro-americanas. Um dos livros chama- -se “I am Jackie Robinson”, sobre o primeiro afro-americano a ser integrado numa equipa profissional de baseball, as suas batalhas, aquilo que teve de penar para conquistar o seu meritório lugar. Outro livro é sobre Martin Luther King e o modo como este homem se fez um orador venerado que deixou palavras e apelos gravados para a história da humanidade e cuja vida acabou por perecer precisamente às mãos das balas e do ódio que tanto combatia e que ainda hoje lancinam sonhos de paz e igualdade. O outro livro é sobre Rosa Parks, uma mulher, costureira de profissão, que ficou para a posteridade por não se ter levantado para dar lugar a um branco que estava em pé no autocarro. Isto ocorreu em 1955, quando os pretos só podiam ocupar os bancos traseiros e entrar pela porta de trás e ainda tinham de dar lugar aos brancos se estes não tivessem um lugar vago para se sentar. Por ficar sentada, sem mover um dedo, desencadeou um movimento de emancipação e protesto da comunidade afro-americana que boicotou o uso de autocarros e fez reverter esta medida. Um simples gesto para uma mulher, uma grande atitude para a humanidade. Há quem diga que ela estava demasiado cansada para se levantar, mas Rosa Parks dizia que apenas estava “cansada de conceder”. São livros preciosos para todas as idades pois explicam com frontalidade e com bons textos e ilustrações a vida destas pessoas e os tempos que então se viviam, terminando com uma cronologia e fotos verdadeiras dos próprios. Ficamos a saber que por todo o lado havia casas de banho, elevadores ou bebedouros específicos para “colored people”, que nos autocarros as filas de trás eram para pretos, havendo uma placazinha a sinalizar, e que o motorista ainda poderia colocá-la mais para trás caso houvesse muitos brancos sem lugar para se sentarem. Estes e muitos outros episódios compunham a sociedade naturalmente racista e segregada desses anos. Até hoje talvez só tenha mudado o naturalmente ou assumidamente. De outra coleção também adquiri um livro chamado “A de Activismo” para ambientar as crianças a conceitos como igualdade, democracia e participação a vários níveis. Os pais de hoje em dia tendem (tendemos) a tirar tudo o que não sejam príncipes encantados e princesas fúteis da frente das crianças, fazendo-as viver numa bolha demasiado perfeitinha até que fechadas num quarto descubram a internet e as redes sociais e com ela toda a muita porcaria que por aí se esconde sem filtro nem critério. É necessário começar cedo a mostrar que o mundo não foi sempre como é hoje e que as pessoas não se trataram nem se tratam sempre da mesma maneira. Nem na nossa comunidade e muito menos pelo mundo. Conhecimento e amor pelo próximo desde tenra idade só fazem bem. Como apelou o irmão de George Floyd no discurso em memória do seu irmão: “Eduquem-se. Não esperem que outra pessoa vos diga quem é quem. Vamos mudar, mas pacificamente, por favor”. Redondos vocábulos que tudo dizem. Estamos cansados de nos desunir, de nos destruir, de nos incompreender. Eduquemos as nossas crianças para quererem e tentarem algo melhor. Da infantil idade para o futuro, um sentido abraço!

Manuel João Pires