Logo após a atribui- ção do Prémio No- bel, em 2002, tra- duzi cinco livros de Imre Kertész (1929-2016), saindo três ainda em 2003. Foi uma imersão total, que nos aproxima de vivências – facilitando referências, regresso de personagens… –, em que a limpeza do dizer mais cruamente denuncia uma forma de totalitarismo, até ao espanto, no final de Sorstalanság (1975; Sem Destino, 2003): «Aí, entre as chaminés, nas pausas do sofrimento, havia qual- quer coisa que se parecia à felicidade.» «Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu devia falar da próxima vez, quando me fizerem perguntas. Se fizerem. E se eu próprio não esqueci.» Não esqueceu; será uma obsessão, que nos suspende o teclado. Esse voto de escrita seca, sobressaltada pelo polilin- guismo (falas em alemão, ídiche, polaco, francês), busca-se impessoal, logo universal, mal disfarçan- do autobiografia em quem procura ‘fidelidade’. É diferente A Recusa (2003), massa compacta irónica contra um diferen- te totalitarismo (desejo- so, por exemplo, de esca- motear o anti-semitismo), no gozo de até 32 frases entre parêntesis que se sucedem, qual clausura de sujeito vagueando em casa e pelos corredores da burocracia: propõe a edição do primeiro livro, até ao fiasco (outro título possível). Convém simplificar as longas divagações frásicas, barroquizantes. Diferente, ainda, encer- rando trilogia, Kaddish para Uma Criança Que não Vai Nascer (2004), quase poema em prosa, em to- nalidade elegíaca. Vale a pena ter filhos, ser humanidade, após Auschwitz? Não. E como se resolve a relação com o pai-Deus em quem, em toda a obra, não cessa de reflectir sobre a judeidade? «Auschwitz, digo à minha mulher, apareceu-me depois como uma exacerbação das virtudes que me inculcavam desde a mais tenra infância. Sim, foi então, na infância, ao longo da minha educação, que começou o meu imperdoável aniquilamento, a minha sobrevivência jamais sobrevivida, digo à minha mulher. Participei de forma modesta e nem sempre muito eficaz na trama silenciosa urdida contra a minha vida, digo à minha mulher. Auschwitz, digo à minha mulher, representa para mim a imagem do pai, sim, o pai e Auschwitz despertam em mim os mesmos ecos, digo à minha mulher. E se é verdade que Deus é um pai sublimado, então, Deus revelou-se-me sob a forma de Auschwitz, digo à minha mulher.» Este final é terrível, ao sobrepor o terreno malé- fico e um transcendente desejado salvífico; mas, lembrados do final de Sem Destino, talvez pos- samos dizer que, para Kertész, judeu sem igreja, Deus é uma aparência de felicidade… Na imodéstia em nós ca- lada, é bom ouvir de um professor universitário húngaro que Kertész se lê melhor em português do que nessa difícil língua aglutinante. E rever os nossos diálogos no filme tirado de Sem Destino sabe bem. A memória do Holocausto, variamente lido, ajuda; viver na Budapeste dos anos 80, já entreabrindo ao Ocidente, também. Köves, o alter-ego reiterado, tira o nome de ‘pedra’, e há uma mineralização da linguagem que damos sem patético, mas sem esconder quadros dramáticos, afinal possíveis. O literal é a sua maior força. No mais, verter um autor secundarizado na sua pátria, que o Nobel universaliza, é emparceirá-lo com Jean Améry, Tadeusz Borowski, Paul Celan, Levi, o compatriota Radnóti Miklós, e tantos que o leitor pode acrescentar no item “O Holocausto como cultura”, título de conferência de Kertész (1989). O mal e o fundo dos homens vêem- -se melhor na limpidez do texto, como em água transparente. Associar o nosso nome aos milhares de leitores que descobrem um autor é beneficiar este e aqueles.