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Virgens ofendidas

A deputada Emília Cerqueira declarou não existirem virgens. Pa­-ra meu sossego verifiquei que no tocante a azeites continuam à venda os extra-virgens. Ainda bem. Para lá da ironia um pouco pesada a graçola da honorável vinda do Alto Minho deu salientes provas de desconhecer ou não querer saber o que caía sobre a rapariga desflorada antes de casar.

Na cotação bolsista denomi-­nada – honra e vergonha – a perda dos três vinténs desvalorizava-a de modo pungente restando-lhe esperar o aparecimento de um homem compreensivo, viúvo ou velho solteirão. Não há muito tempo entrevistei uma senhora de oitenta anos a qual foi enganada, logo estigmatizada. Um viúvo deu-lhe apelido e carinho, ela concedeu-lhe amor e fidelidade até o «seu homem morrer».

Não vou socorrer-me dos tremendos costumes relativa­men­te às mulheres medievais seduzidas ou forçadas, limito-me a recordar um episódio ocorrido no concelho de Vinhais, nos anos vinte do século passado, após a cerimónia de casamento o pai da noiva no decurso das libações à volta da mesa levantou a voz, chamou o genro e a filha, e disse: aqui a tens – bonita, rica e virgem –, só que passados três meses ela pariu. O pai coberto de tristeza nunca recuperou da violenta humilhação.

Os anos consumiram calendários, a evolução social provocou enormes alteridades no comportamento sexual e respectivas práticas fundamentalmente no universo feminino e abaixo dos cinquenta anos com o multiplicado contributo da Internet disseminada por tudo quanto é sítio de Portugal.

Abundam os debates acerca de sexo e sociedade, sobre as diferenças e o direito a ser diferente, raramente se analisa e discute o conceito de virgindade para lá das jocosidades grosseiras ou de salão, a sua validade para inúmeros jovens, a conflitualidade entre os conservadores e os liberais expressa em silêncios ruidosos, o nebuloso paradoxo do para mim e para os outros. Em suma: uma coisa é o pudor em falar seriamente num ambiente sério e a palrice obscena, do comentar ordinário encobridor de pulsões enterradas no sepulcro da mente.

Sim, a deputada laranjinha procurou salvar Silvano de novas explicações minimizando custos políticos, a emenda saiu pior que o soneto, «admiradores colegas deputados» da sua bancada desmentirem a prática de acessos indevidos dando claridade à luta intestina dos deputados adversários (inimigos) de Rio e os seus apoiantes. Porque nestas frondas prevalece o vale tudo brotaram como cogumelos em tempo chuvoso insinuações de falta de inocência de Maria Emília, sim de oportunismo caucionadoras sua integração em lugar elegível na lista a ser sufragada nas eleições do próximo ano.

Uma coisa é certa, modelos de contornarem crivos de controlo na Assembleia da República sempre existiram e vão continuar a existir, desde o esquema das viagens ao de quatro deputados viajarem no mesmo automóvel e cada qual apresentar a folha de quilómetros vão sendo conhecidos quando as comadres ficam zangadas ou o prevaricador é descoberto oferecendo aos eleitores motivos de gáudio e crítica acesa.

A cupidez não é exclusivo de uma casta, é extensiva a todas as castas, nem os reis, nem infantas e demais nobreza escapam, o dinheiro é engodo triunfante, só que se algumas mulheres e homens detêm liames motivadores de cederem à tentação, outras pessoas, a maioria, repele-a, sendo sustentáculo ou trave mestra da democracia. Há dias pessoa minha conhecida sofreu condenação a pesada pena de cadeia dado o seu envolvimento em negócio desastrado de oitenta milhões de euros, penaliza-me, não deixarei de o cumprimentar e falar com ele se o encontrar, no entanto, obrigo-me a pensar na razão de pessoas donas de vidas desafogadas enveredarem por caminhos tão tortuosos concedendo substância moderna ao velho anexim – quem tudo quer, tudo perde –, levando a chistes de uns, a manifestações de tristeza de outros. As mães de antanho constantemente lembravam aos filhos o preceito de não caírem em tentação. Alguns tinham os ouvidos cheios de cera e afundam-se no poço do opróbrio. Talvez não existam virgens ofendidas no circuito do comportamento político, porém ainda as há virgens na causa pública permitirem-lhe rasgar as vestes.

As folhas e a sua linguagem colorida

As folhas secas apanham-se com pás e outras máquinas mais imponentes hoje em dia. Com a preocupação da competitividade, nestes dias, vemos trabalhar inúmeros funcionários das câmaras, apetrechados até à cabeça, varrer e transportar montões e montões de folhas secas. Despejam-nas depois nos contentores do lixo. Como deve ser prático desembaraçar-se rapidamente ad patres, em grandes quantidades, das invasoras e incomodantes chuvas de folhas deste outono avançado.  

Nada de aditamento, nenhuma piedade, pouca consideração por estas infelizes que, mal se desprendem das árvores sobre as quais viveram o seu tempinho de folhas, são transportadas em direcção à saída, ao exílio.

E mesmo assim ! Fixemo-las um momento, estas folhas ditas “mortas”, antes da sua colheita. Mortas? Que impostura! Não é porque mudaram de cor que deixaram de viver. Não é porque caíram da árvore que renunciaram a toda a sua vida interior. Ou cessaram de nos interpelar, na sua própria linguagem. Se falamos da “linguagem das flores”, porque não da linguagem das folhas?

Vede as folhas amareladas como mil sóis que correm ainda sobre o alcatrão com o mínimo sopro de vento. Vede como estas anunciadoras das primaveras vindouras se alegram (sem razão) querendo despertar os nossos olhares. Vede rodopiar as outras, mais pequenas, como asas de borboletas brancas. Têm um ar feliz e parecem dizer que embelezam o chão negro das nossas ruas e passeios. E como nos devem deixar alegres. Vede os tapetes de folhas ainda verdes juntar-se ao pé das árvores ou nos cantos dos jardins, ou nas valetas, bem vivas, persuadidas da sua imortalidade. O mais pequeno raio de luz fá-las brilhar. Que belo otimismo!

Vede os ramos cujas folhas caiem no chão em família, juntinhas. Parecem passar-se a palavra: “ upa, vamos? Mantenhamo-nos unidas, hein, meninas ». E atingir o solo, confiantes. Ignoram ainda, enquanto cobrem o chão, que não passarão o inverno e que o homem cujos pés indiferentes as esmagam, têm uma única preocupação: vê-las desaparecer para sempre. E as mais resistentes, alaranjadas, acastanhadas, secas, largas, que fazem mais barulho quando deslizam ou quando são empurradas com os pés, será por já não serem verdes que podem ser consideradas defuntas?

Escutemos as mensagens das folhas, por mais alguns dias ainda, depositadas diante dos nossos olhos como testemunhas das lindas estações de antigamente. Escutemos o seu otimismo inato, natural, estas luzes que deixam no chão como para nos dizer que o sol voltará, que o ciclo das estações é a única certeza que temos, que a forte ligação entre os ramos resiste a tudo. Vejamos como estas se movem em grupos bem organizados, em multidão percorrer os paralelos. Lá em cima moviam-se com o vento, aqui em baixo movem-se em espaços maiores, como numa liberdade reencontrada. 

Porquê que não as deixamos, no seu louco otimismo, correr pelos caminhos fora ou dormir em montes serenos, longe do ruído dos homens? Porquê essa necessidade de as amontoar, de as colher em sacos negros ou verdes e transparentes para as levar onde? Para que cemitério de folhas, em que incinerador, em que morgue administrativa? Onde é que as folhas ditas mortas podem viver tranquilamente (digamos: na natureza), não poderão permanecer onde caíram? Estas fabricam o húmus. Na cidade, nada de húmus, é o grande problema das cidades. A sua limpeza (relativa…) é um sinal do seu desprendimento. E talvez da sua desumanidade.