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Divino

A ideia de divindade persegue-nos desde que somos humanos. Já se identificaram os deuses com o desconhecido, uma definição extremamente forte se tivermos em conta a enormidade deste em relação ao quase nada que nos é dado conhecer. Evidentemente as ciências têm feito recuar a ignorância e ocupado muito do espaço que costumava ser deles, mas por mais que se descubra ou venha a descobrir os enigmas do cosmos são infinitos, nunca vão desaparecer e continuarão a importunar-nos. Assim, interiorizar a nossa insignificância no meio do imenso desconhecido, temê-lo e reverenciá-lo, é por si uma religião: sentir a ligação ao mistério que nos envolve. E igualmente, ao darmo-nos conta de que a situação que nos toca é a mesma de todos os outros seres, o fundamento de uma ética. Também por isso a relação que temos com os deuses é sobretudo emotiva. Somos forçados a existir sem saber porquê numa realidade que não pedimos. A carregar uma vida às costas ao serviço de forças que não controlamos, antes nos controlam, vivendo-a tanto quanto ela vive de nós. A lutar mais ou menos inconscientemente com o que nos cerca e domina, atascados em dúvidas sobre o que andamos a fazer. A estranheza e a inutilidade de tudo pairam por cima das nossas cabeças nesta passagem que sabemos temporária e breve. Sentimentos íntimos e esmagadores de abandono e orfandade, difíceis de traduzir em palavras, fazem de nós permanentes meninos ansiosos à procura de figuras que nos acudam e protejam no desamparo – deus-pai, mãe-do-céu. Que nos salvem de nós próprios e da solidão com promessas de vida futura, feliz, num além incerto – cristo-salvador. Para justificar a situação absurda em que estamos pendurados, imaginámos seres sobrenaturais cujos atributos contrastam com os estreitos limites que vemos em nós, de quem esperamos receber a dádiva daquilo que nos falta, a quem rogamos que nos apontem um caminho. Infelizmente os que falam em seu nome são pessoas iguais a nós. Os chamados imortais permanecem sempre mudos e quedos, abrigando-nos da dúvida criando mais dúvida. E é assim que onde há crença há descrença. Acreditar é duvidar. Nas palavras de tertuliano, “acredito porque é absurdo”. Nas coisas de que estamos certos não acreditamos. Nos deuses sim, precisamente por não termos essa garantia. Por isso, como diz um pensador dos nossos dias, “bem escondida no coração do ateu há resquícios de crença, no mais íntimo do crente resiste a sombra da dúvida”. Tanta mais dúvida, por certo, quanto mais fanático o crente for. É provável que tudo isto explique ainda que tenhamos feito nascer e morrer milhares e milhares de deuses ao longo do tempo, e sabe-se lá quantos mais estarão na calha para nascer e morrer. Na incerteza, como alternativas terrenas a eles, causamos devastações de toda a ordem, inventamos drogas que nos estupidificam, enfrascamo-nos de trabalho e tecnologia, ambicionamos progresso material sem fim, acumulamos montões de bens supérfluos, cultivamos prazeres fugazes que ainda cavam mais o nosso vazio. Perseguimos inclusive nobres utopias como a beleza, a liberdade, a justiça, a igualdade, sem que nenhum destes escapes nos possa aliviar inteiramente da desesperança. De uma forma ou de outra, dê por onde der, e visto que nunca nos livraremos de acreditar, que seja ao menos em alguma coisa que valha a pena. Pela minha parte deixei-me tocar por uma proposta de divindade que o evangelista lucas põe na boca de jesus: “o reino de deus não é algo que se veja chegar, é um estado de espírito, está dentro de vós” (17:20,21). Suponho não errar se disser que podemos também chamar a esse reino consciência, psique, mente, alma, pensamento. Apesar de não palpável, se o temos dentro não estaria correto dizer que nos transcende, sendo por isso menos uma aposta de fé, um credo, do que uma certeza. Permitimos ou não que se manifeste, conforme o desejarmos, mas ninguém no-lo trará a não ser nós. É difícil imaginar algo mais individual, subjetivo, privativo. Como origem de todo o sentimento, nesse lugar onde só a nós rezamos tanto pode nascer a dor, o desgosto e a loucura como a harmonia, a paz e o amor. Adivinhando os abismos dessa dimensão sem limites, temendo o poder fantástico que promete e fugindo ao trabalho sobre-humano de a desvendar, vivemos ainda na idade da pedra da sua exploração.

“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais Prisão e fuga de Pedro Carvalho

Ao início da segunda década do século XVIII, o judaísmo medrava em Bragança, com a gente da nação a ganhar muita importância e a ascender na escala social, graças ao seu poder económico. E este poderio económico advinha, em boa parte do fornecimento de géneros e abono de salários aos militares estacionados na cidade, mas, sobretudo, da grande procura de tecidos de seda que então se registava no país e cujas fábricas estavam, na quase totalidade, em suas mãos. E se o judaísmo medrava, era ocasião para o santo ofício fazer boas colheitas. Só na inquisição de Coimbra, nos 4 autos realizados de 1711 a 1718, terão sido penitenciados 205 judaizantes de Bragança, conforme listas publicadas pelo Abade de Baçal.  Escaldados pelos sequestros de bens que geralmente acompanhavam as prisões, os homens e mulheres da nação entraram de seguir a estratégia de se apresentar na inquisição, antes que os prendessem. Assim evitavam o sequestro imediato dos bens. Aconteceram então verdadeiras “romarias” de gente da nação de Bragança em direção a Coimbra. No mês de Janeiro de 1713, registou-se na cidade uma onda de prisões, com uma grande “leva” para Coimbra, seguindo-se uma vaga de apresentações, cerca de uma dúzia de pessoas, ao início de Fevereiro, conforme se vê das listas disponibilizadas pelos arquivos da Torre do Tombo. Entre essa dúzia de judaizantes brigantinos encontravam-se Helena Lopes, viúva de Francisco Carvalho e seu filho Pedro Rodrigues Carvalho, que agora vamos acompanhar.  Mãe e filho tiveram a primeira audiência do tribunal em 10.2.1713 e, em 22 de Junho seguinte, Pedro Carvalho estava despachado, com ordem para regressar a casa. A mãe teria idêntico despacho 2 meses depois, não chegando então a conhecer as celas húmidas e escuras do santo ofício.  Regressaram a Bragança, mas, em Coimbra, ficaram abertos os respetivos processos. Neles iriam os inquisidores registando culpas não confessadas e outras que diferentes réus eventualmente lhe acrescentariam. Sim, que a apresentação implicava esse risco de as confissões do próprio não coincidirem com outras, ou serem diminutas. Foi isso o que aconteceu com Helena Lopes que, em Fevereiro do ano seguinte, foi mandada e levar para a inquisição de Coimbra, saindo condenada em cárcere e hábito penitencial perpétuo, no auto-da-fé de 17.5.1716. E foi também por “diminuição das mesmas culpas” confessadas, que o filho, meses depois, ao início do mês de Novembro de 1714, foi igualmente preso, juntamente com os outros 8 de que vimos tratando. Enquanto se preparava a leva para Coimbra, foi o prisioneiro entregue à guarda de Manuel Pires da Silva, depositário das sisas de Sua Majestade. Este, ao contrário dos outros depositários, não permitiu que o prisioneiro recebesse visitas, colocando à porta de casa uma sentinela. E, dois dias depois, antes de o levar à Quinta de Santa Apolónia para o entregar ao familiar do santo ofício encarregado da leva para Coimbra, mandou-lhe meter grilhões e não consentiu que pessoa alguma se aproximasse a falar com ele. O mesmo depositário, prestaria mais tarde o depoimento seguinte: - Pedro Carvalho, que foi depositado em casa dele, testemunha, saíra com grilhões e ouvira dizer publicamente que os mais saíram sem eles; e que o mesmo preso Pedro Carvalho se escandalizara disso e protestava que o havia de dizer aos senhores inquisidores.  Não acompanhamos a leva dos prisioneiros, mas vamos até Coimbra, aos cárceres da inquisição, à cela onde meteram Pedro de Carvalho, em companhia de Henrique Rodrigues Gabriel que, com ele, viera preso de Bragança. Ali, a relações entre eles terão azedado, conforme relatou Henrique aos inquisidores. Vejam as suas próprias palavras que, além de esclarecerem a cena, mostram aspetos da vivência nos cárceres: - Disse que, sendo o dito Pedro Rodrigues Carvalho companheiro do réu na mesma prisão dos cárceres desta inquisição, sucedeu que o dito Pedro Rodrigues Carvalho quebrou o cântaro da água de que se serviam; e vindo o alcaide a dar-lhe água, perguntou pelo dito cântaro e quem o quebrara; e logo o réu lhe disse que o quebrara o seu companheiro; e logo ele com o réu teve grandes dúvidas, o que foi em 27 de Setembro próximo passado (…) No outro dia seguinte chamou o dito seu companheiro pelo alcaide a quem disse que tirasse ao réu uma tesoura e uma navalha, porque, dizia, o tinha ameaçado, que com elas lhe havia de cortar a cara. E suposto que tal não dissesse, nem pretendesse, contudo logo ele entregou ao alcaide a dita tesoura e navalha. E depois disso, suposto que ambos ficassem no mesmo cárcere como dantes, contudo nunca mais comeram nem cozinharam juntos a sua ração, mas cada um apartados, e logo na mesma ocasião das ditas dúvidas, ameaçou ao réu e pediu mesa.

Que sendo na noite de 9 de Fevereiro próximo passado do corrente ano, a horas da meia- -noite, estando ele deitado na sua cama, começou o dito seu companheiro a descompô-lo com palavras injuriosas; e pegando em uma ratoeira de cepo, deu com ela uma grande pancada na testa do réu, junto à fronte, com que lhe fez uma ferida; e logo com a mesma e pau dela, já depois de quebrada, lhe deu outras pancadas e, sem dúvida, o matava, se a ratoeira não quebrara e o réu não gritasse, chamando pelo alcaide, a cujas vozes o deixou o dito seu companheiro; mas logo que o cárcere se abriu pelo alcaide, de manhã, lhe contou o réu o sucesso e mostrou o ferimento, pedindo que dali o mudasse para outro cárcere; e com efeito assim fez, ficanAo início da segunda década do século XVIII, o judaísmo medrava em Bragança, com a gente da nação a ganhar muita importância e a ascender na escala social, graças ao seu poder económico. E este poderio económico advinha, em boa parte do fornecimento de géneros e abono de salários aos militares estacionados na cidade, mas, sobretudo, da grande procura de tecidos de seda que então se registava no país e cujas fábricas estavam, na quase totalidade, em suas mãos. E se o judaísmo medrava, era ocasião para o santo ofício fazer boas colheitas. Só na inquisição de Coimbra, nos 4 autos realizados de 1711 a 1718, terão sido penitenciados 205 judaizantes de Bragança, conforme listas publicadas pelo Abade de Baçal.  Escaldados pelos sequestros de bens que geralmente acompanhavam as prisões, os homens e mulheres da nação entraram de seguir a estratégia de se apresentar na inquisição, antes que os prendessem. Assim evitavam o sequestro imediato dos bens. Aconteceram então verdadeiras “romarias” de gente da nação de Bragança em direção a Coimbra. No mês de Janeiro de 1713, registou-se na cidade uma onda de prisões, com uma grande “leva” para Coimbra, seguindo-se uma vaga de apresentações, cerca de uma dúzia de pessoas, ao início de Fevereiro, conforme se vê das listas disponibilizadas pelos arquivos da Torre do Tombo. Entre essa dúzia de judaizantes brigantinos encontravam-se Helena Lopes, viúva de Francisco Carvalho e seu filho Pedro Rodrigues Carvalho, que agora vamos acompanhar.  Mãe e filho tiveram a primeira audiência do tribunal em 10.2.1713 e, em 22 de Junho seguinte, Pedro Carvalho estava despachado, com ordem para regressar a casa. A mãe teria idêntico despacho 2 meses depois, não chegando então a conhecer as celas húmidas e escuras do santo ofício.  Regressaram a Bragança, mas, em Coimbra, ficaram abertos os respetivos processos. Neles iriam os inquisidores registando culpas não confessadas e outras que diferentes réus eventualmente lhe acresdo ainda os seus móveis no dito cárcere em que ficou o companheiro, o qual se foi aos ditos móveis e lhe fez duas rasgaduras grandes no capote, na cabaça nova três ou quatro e outras muitas em três camisas e em um lençol. Que indo o réu, a chamado do dito alcaide e dos guardas, tirar os ditos móveis que lhe tinham ficado no dito cárcere, disse o dito companheiro, diante de todos, para o réu, que Deus o levasse em bem e à sua mulher, e que ele não tinha coisa alguma que dizer deles na matéria da fé; mas dali a poucas horas, começou o mesmo companheiro, em vozes altas, a bradar para todos os presos que o acusassem; e para seu cunhado Manuel, repetindo muitas vezes dizendo: - Manuel, Manuel, vinga-te de Henrique Rodrigues Gabriel, réu, que me entregou ao braço secular, sendo ele homem relapso. Certamente que Pedro Carvalho estava com medo que o condenassem à morte, uma vez que já antes fora penitenciado. Possivelmente sentia-se como um homem relapso. A ponto de… acabar por fugir dos cárceres da inquisição. Não foi muito longe, pois que, em 20.4.1716, já estava de novo encarcerado em Coimbra. Não sabemos os pormenores da fuga nem a situação processual em que o réu ficou. Em circunstâncias normais, a fuga seria considerada um crime de extrema gravidade. Neste caso concreto, não pudemos avaliar, pois não tivemos acesso ao respetivo processo. Apenas sabemos que foi sentenciado no auto-da-fé realizado em 20 de Maio seguinte, condenado em sequestro de bens, cárcere e hábito penitencial e 5 anos de degredo para Angola. No mesmo auto saiu também sua mãe, como atrás se disse e mais uns 59 judaizantes de Bragança.