Os votos inúteis dos cidadãos do interior

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Ter, 15/10/2019 - 02:45


O regime democrático português adoptou o método de representação proporcional de Hondt para apurar os mandatos de deputados. Percebia-se que assim se garantia mais autenticidade na expressão institucional das opções realmente existentes na comunidade e a consequente pluralidade na Assembleia da República, mas também nos órgãos deliberativos e executivos dos municípios.
Uma das virtudes do método é propiciar a eleição de representantes exteriores ao universo dos partidos dominantes, abrindo a participação a outras perspectivas que, doutra forma, se veriam repetidamente reduzidas à inutilidade cívica, com consequências no que respeita à abstenção e, eventualmente, na radicalização contra o sistema democrático representativo.
Passados quarenta e cinco anos pressente-se que o método comporta, afinal, algumas debilidades, que resultam numa distorção objectiva e na existência de votos com mais peso do que outros.
Na realidade, o número de mandatos estabelecidos para cada um dos círculos eleitorais e a sua relação com a população residente tem vindo a determinar perdas sucessivas de representantes dos territórios do designado interior, a favor de círculos do litoral. Assim se criam condições para que muitas dezenas de milhar de votos não sirvam realmente para nada, enquanto se pode chegar a deputado por Lisboa ou pelo Porto obtendo uma votação insignificante no contexto nacional, o que agrava a distorção, porque os votos dispersos pelos círculos com menos população são literalmente deitados ao lixo da história. Ao mesmo tempo, as decisões do poder tendem a sobrevalorizar minorias concentradas, muito activas e avisadas para as oportunidades que se lhes apresentam.
Estes são factos cada vez mais notórios, mas não se vislumbra vontade política de introduzir factores de correcção. Na verdade, tal como as coisas estão, convém aos partidos do poder a existência de círculos com grande densidade demográfica, porque as contas também os beneficiam no apuramento dos últimos deputados.
Se acrescentarmos que a ligação de cada deputado aos eleitores do seu círculo, que deveria ser elemento principal da relação política, tem sido desvalorizada, a favor de uma pretensa responsabilidade nacional dos eleitos, podemos estar perto da definitiva desvalorização dos actos eleitorais em grande parte do país, com efeitos nefastos para a legitimidade dos resultados e, naturalmente, para o futuro da verdadeira democracia.
Se os deputados não representam ou não querem representar os eleitores do seu círculo, seria mais justo que se estabelecesse um único círculo nacional. Cada candidatura apresentaria 230 candidatos e os necessários suplentes. Certamente a distribuição de mandatos seria outra, provavelmente mais consentânea com a vontade política dos eleitores.
Quanto aos interesses das populações destes territórios, logo se veria se havia coragem para impor às lideranças partidárias o peso específico correspondente aos actuais círculos do interior. Talvez ficássemos a saber com que políticos, nacionais e regionais, poderíamos realmente contar.