Miguel Augusto Silva

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De Noémia Delgado e das máscaras do nordeste

O  som de uma velha locomotiva corta o ar

Montes

Uma voz feminina entoa um responsório medieval

Inverno

Um homem e uma junta de bois lavram a terra

A beleza pura da luz pura reflectida na terra pura

 

A voz de Alexandre O’Neill. «Em muitas regiões da Europa, sobretudo nos países alpinos, gelados e balcânicos, ainda hoje existem certas celebrações do “Ciclo do Inverno” em que aparecem mascarados. Nos casos mais característicos, estes mascarados figuram personagens tradicionais definidas. Por vezes é patente a relação dessas personagens – demónios e fantasmas – com os mortos, e pode-se por isso supor que elas constituem elementos que em longínquas eras faziam parte das cerimónias do culto dos mortos. Entre nós, vamos encontrar máscaras deste tipo nas terras de feição ainda arcaizante do Nordeste Transmontano. (…)»

Trás-os-Montes, anos 70. Máscaras. Entre o Natal de 1974 e a Quarta-feira de cinzas de 1975, Noémia Delgado filmou as tradições ancestrais associadas aos ritos pagãos (do solstício, da transição para a idade adulta, de passagem, etc.) das “Festas do Inverno” do Nordeste Transmontano. Máscaras é um filme documental de exploração antropológica, baseado em trabalhos de pesquisa etnográfica (Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira, Michel Giacometti, entre outros), na senda de algum cinema português que abordava este tipo de temáticas (Festa, Trabalho e Pão em Grijó de Parada, 1973, de Manuel Costa e Silva; Falamos de Rio de Onor, 1974, de António Campos). A realizadora Noémia Delgado [responsável pela montagem de muitos filmes de Manoel de Oliveira] explora aqui a natureza medieval de algumas tradições transmontanas, que expõe de forma crua e directa, o que constituirá porventura também um aspecto de afirmação de um Novo Cinema Português, acerca de uma região que, por via do isolamento geográfico mas não só, o Estado Novo tentou apagar.

O documentário foi realizado nos concelhos de Bragança e de Mogadouro. A Festa dos Rapazes (Varge), o Santo Estêvão (Grijó de Parada), o Fim de Ano (Bemposta), o Entrudo (Podence), a Quarta-feira de cinzas (Bragança). Na cidade de Bragança, o “Dia dos Diabos” já não se realizava nesse tempo, tendo sido propositadamente encenado para o documentário… Felizmente esta tradição ainda hoje se mantém viva em Vinhais, onde na Quarta-feira de cinzas marca o fim das Festas de Inverno. [Lamentavelmente, talvez por falta de informação ou pesquisa insuficiente, Vinhais não foi incluída na obra-prima de Noémia Delgado].

Mas Máscaras tem muitos outros pontos de interesse. É, por exemplo, um dos mais belos filmes de sempre do cinema português, e, tal como outras manifestações de carácter cultural (etnográficas, antropológicas, musicológicas, literárias) produzidas sobre Trás-os-Montes, uma ode à região e às suas gentes. Uma das partes do documentário que considero mais rica do ponto de vista antropológico é a festa do Santo Estêvão em Grijó de Parada (26 de Dezembro). Uma refeição comunitária, com a mesa instalada no centro da aldeia, onde os únicos comensais que nela se sentam são o pároco e os mordomos da festa… Ainda aqui, num dos momentos mais belos do documentário, a realizadora detém-se nos muitos cestos de vime, cheios de magníficos pães de trigo (ritual de bênção do pão, base da alimentação dessas gentes).

Máscaras é o retrato de um mundo que, quer queiramos quer não, já não existe. Em meados da década de 70, o isolamento geográfico, a pobreza, a falta de recursos, acabariam por contribuir indirectamente para a preservação das tradições, integradas no quotidiano, e de um conjunto de traços socioculturais de características únicas. Para isso contribuiu definitivamente a própria natureza do regime agrícola da região. O minifúndio, a cultura de sequeiro, os baldios comunitários, os lameiros e os direitos de passagem moldaram o sistema agrário transmontano, restringindo a mecanização (só a década de 70 viu os primeiros tractores chegarem a algumas destas aldeias). A natureza do povo, a terra fértil, o pastoreio, impediram a total desertificação e alguma emigração (recordo, ainda há poucos anos, o Tio Adérito, pastor da aldeia de Lagarelhos, Vinhais, apontando para o seu rebanho: “Foram a minha França!”).

Máscaras reveste-se – hoje mais do que nunca – de um magnetismo invulgar, telúrico, quase transcendente. Tem uma religiosidade e um respeito pela tradição poucas vezes observados em Portugal. E mais de quarenta anos passados sobre a sua primeira apresentação pública, no Festival de Cannes, a 20 de Maio de 1976 (feriado municipal em Vinhais), continua a levantar uma série de questões sobre o documentário antropológico e sobre a preservação das tradições. A grande virtude do filme de Noémia Delgado consiste na reduzida manipulação das cenas, com a realizadora a privilegiar a observação/filmagem directa, não intrusiva; a luz natural; a beleza dramática das paisagens; a complexa candura das personagens-intervenientes, sem constrangimentos exteriores de ordem cultural/comportamental, num tempo em que estas aldeias não dispunham de infraestruturas básicas ou electricidade… [Quantos “actores” de Máscaras terão visto o “seu” filme?]. Os mesmos desafios se colocam também às próprias tradições: como mantê-las vivas num mundo mediatizado, sobre-exposto, sem comprometer os aspectos fundamentais da sua própria existência (espontaneidade, naturalidade, autenticidade, verdade), tantas vezes desprovidas do enquadramento/contextualização do quotidiano?

Em Maio de 2016 assisti na Cinemateca Portuguesa à exibição deste documentário, em homenagem à sua realizadora, falecida a 2 de Março desse ano. Na sessão esteve presente Acácio de Almeida, director de fotografia de Máscaras, que falou um pouco sobre a forma como as filmagens tinham decorrido (e da escassez de meios técnicos). Tendo nascido em Vinhais e vivido as tradições das aldeias de Trás-os-Montes na época em que o filme foi realizado, reconheci em Máscaras as gentes do meu passado, as vestes, os gestos, os olhares, os comportamentos, as aldeias de lama… essa luz única que ainda forma um arco-íris de lágrimas ou uma fonte de esperança. No final da sessão conversei um pouco com Acácio de Almeida, felicitando-o pela mestria com que captou essa luz primordial. “A luz estava lá”, respondeu-me.