Reviralho

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A respeito destas crónicas, alguém me dizia há tempos que eu era do reviralho. Só podia ser a fazer pouco, tendo em conta que em mim sempre se reuniram ingredientes pouco propícios a lutar por aquelas mudanças que viram as sociedades de pernas para o ar: com o tempo as minhas certezas (se alguma vez tive algo digno desse nome) correm o sério risco de recuar para valores negativos; sou de uma abulia demasiado entranhada para mexer uma palha, a começar pelas palhas da vida pessoal; considero-me absolutamente incapaz de mobilizar duas pessoas, nem que seja para empurrar um carro empanado no meio do trânsito; e por último, a minha insignificância política consegue felizmente bater aos pontos a desse rapaz com fixação pelas câmaras a quem chamam o emplastro. A imagem que melhor me definiria talvez fosse a do canídeo já entrado em anos e com quilos em excesso que, quando o passante assoma à porta do dono, ladra arrastadamente três vezes por hábito e obrigação, não se dando sequer ao esforço de se levantar (quanto mais morder) antes de esmagar outra vez os beiços pendentes contra as ervas.

É certo que aqui ou ali posso dar a ideia de perfilhar uma visão maniqueísta na qual poderosos e humildes, exploradores e explorados, governantes e governados estariam em conflito, comigo a defender como um quixote os segundos de cada par contra a maldade dos primeiros. Não é que não pense ser assim a realidade, mas o meu idílio romântico com o povo foi na casa dos vinte anos. Hoje encaro essa classe de forma bem menos poética, tendo todas as razões para crer que a visão de George Orwel em “O triunfo dos porcos” esteja corretíssima: se por súbito milagre as posições relativas dentro de qualquer daqueles pares se invertessem, no dia seguinte continuaria tudo igual. A natureza de uns e outros é exatamente a mesma, farinha do mesmo saco, de modo que preconizar “uma terra sem amos” tem sido demasiadas vezes mudar apenas de amos, mais viciosos que os que tinham sido depostos. Desconfio da sombria verdade de que os fracos não querem acabar com os fortes, apenas substituir-se a eles. Vítimas hoje, carrascos amanhã. Sempre e por todo o lado abundaram situações em que o povo explorado, em chegando ao poder, faz figuras mais lamentáveis do que a mais reacionária das burguesias, e nem é preciso sair desta cismontana província para o comprovar com magníficos exemplares.  

É claríssimo que a revolução material das últimas décadas era mais que desejável, que a abolição da fome e miséria seculares do povo se impunha como uma urgência civilizacional. Mas sendo certo que passámos a viver incomparavelmente mais aliviados no que respeita às carências do corpo, a deploranda verdade é que em termos culturais, cívicos, éticos, espirituais, não nos edificámos por aí além. Pelo contrário, fico muitas vezes com a impressão desconsolada de que a barriga cheia nos empanturrou também de superficialidade, materialismo, frustração, melindre, intransigência, arrogância, conflituosidade. Nos predispôs à vitimização, a culpar a realidade em vez de procurar criá-la. Os três famosos éfes do salazarismo com os quais se dizia alienar-se o povo nesse tempo (Fátima, fado, futebol) aí continuam, pujantes como nunca, aliados hoje a mais uns quantos. Factos ilustrativos de que a melhoria das condições materiais é apenas um dos lados da coisa. Portanto, idealismos da minha parte, absolutamente fora de questão. A anos-luz de algo que se pareça com desejar “revirar” seja o que for a esse respeito, podem os instalados dormir tranquilos.

Temos um lado luminoso e outro negro, talvez com alguma inclinação para este, o que em geral nos leva a querer tirar proveito do próximo. E a não ser que arranje modo de tomar consciência disso e decidir qual das vertentes quer extrair de si, dificilmente algum dia o homem deixará de ser lobo do homem. Não acredito em mudanças substanciais e duráveis se não as que passam pelo conhecimento, pela sabedoria, em particular os que se operam quando nos voltamos para nós com uma imensa vontade de descobrir o que está bem no fundo dos obscuros subterrâneos das nossas mentes. Penso que o progresso passa mais por aí. De resto, algo tão difícil como assustador e a que sempre resistimos com ferocidade, razão pela qual “muitos são chamados, mas poucos escolhidos”.

 

Eduardo Pires