A prima Vera e a Primavera

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Aquilo que quero lembrar volta sempre quantas vezes distorcido, fantasiado, mas volta. A prima Vera não seria prima, porém naquela aldeia onde todas as mulheres são tias e todos os homens são tios, para isso é só dobrar a casa dos trinta anos. Era assim, corrige-me a memória. A memória tem razão seja pela velocidade do tempo, seja por via da desmemória trepidante do que hoje é, amanhã não sabemos, depois entra-se no alçapão do obscuro onde pululam sítios ou lugares de memória. Terá futuro a memória?

Neste mês seco de Março, no dia 21, no decurso do obrigatório calcorrear peripatético por via da recuperação de deteriorado corpo em virtude de apagão num hospital dito de referência, a memória recuperou a imagem da Vera de olhos verdes, fulgência ofídica dos olhos, cabelos louros, corpo estirado pontuado por dois pómulos em crescimento, protegendo-se da chuva puxada a vento utilizando uma saca de serapilheira colocada na cabeça à maneira das capuchas. A Páscoa está a escassos dias, em férias e empertigado quanto galinho muito barulho para nada, protegido da borrasca, atirei à Vera patetices às quais respondeu lançando-me serpentino olhar de desdém abandonando o precário abrigo do cabanal. E, desandou. Aqueles olhos vergastaram-me porque a formiga nem aspirações a catarro tinha.

Nunca mais vi a Vera filha de um senhor chamado Jaime, apelidado de Cobro dado o seu afã em abrir buracos na terra, pai de muitos filhos, desvaneceu-se a família julgo na terra do nascimento da mãe, Quintela. Vi por duas vezes a genial construção do bailado de Igor Stravinsky, todos os anos ouço a peça, sempre associo a bera altiva às elevações dos bailarinos.

A memória lança à minha frente relatos de vida apertada de uns e outros, ninguém detinha capitais de modo a uma pessoa ter direito à nomeação de milionária, possuir mil contos, atira-me relatos de vida suspirada e sustentada através do estimável porco, os ovos e frangos, alguma caça, couves, feijões e batatas, pouco azeite, unto ou banha a contento, a paisagem primaveril, exuberante nos verdes, violetas e amarelos perfumados, faziam esquecer as inacessibilidades exibidas, faladas e comentadas por gente de posses e caixeiros-viajantes portadores de amostras e novidades,

Agora, como se fosse um nababo antigo ouço e vejo a Sagração da Primavera, dou-me ao luxo de cotejar gravações, de ir em busca de verdes comestíveis ditos da sazão, verduras de todas as origens e nações. Agora, enquanto a pulsão populista não gangrena a nossas relações seria fundamental pensarmos na possibilidade da sua expansão, uma possibilidade se ficarmos possuídos desse mal, na possibilidade de uma elite cada vez mais restrita ter o usufruto da generalidade das obras culturais das diversas civilizações, na (in) justa medida de o grosso das populações ficarem consoladas na mediocridade da grande farra do burlesco, da imitação, da pantomina mimética.

Vamos ter eleições europeias, vamos ter as exibições ridículas do costume, ainda há semanas li a facúndia do coordenador da Aliança dos ressabiados, até Maio temos de suportar as lamúrias e farroncas do costume, infelizmente, não vamos sentir vontade em eleger deputados bem-mandados, recheados de retórica ressonante até esvair o eco. E, nós por cá todos bem. Se os fundos não falharem!

Os marajás apesar de toda a propaganda paga lautamente estão apreensivos, os sinais de fogo multiplicam-se, os de fumo estão a penetrar nas nossas casas via televisões, algo tem de mudar a fim de tudo como antes. Este princípio deveras estimado desde o Senhor de Lampedusa (agora a braços com as migrações), pode ser colocado em causa devido ao cansaço dos eleitores elevando-se a taxa de abstenção conjuntamente com a pulverização do voto. O tempo quente da Primavera traz o diabo no ventre? Esperemos que não, os nossos filhos e netos não podem pagar duramente os erros dos pais filhos da prosperidade criada no pós segunda guerra mundial. Nós não soubemos criar o futuro, daí a razão de defender a pujança da memória, ela castiga sem pau nem pedra, castiga todos os dias quantas vezes no decurso do chamado sono da manhã.

Armando Fernandes