A Praça do meu descontentamento

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Já teve vários nomes. Praça da Cruz de S. Pedro, Praça do Seixo, Praça Almeida Garrett e actualmente Praça da Sé. Claro que só tenho memória para este último mas lembra-me de, e  já íamos nos anos 80, o Sr. Júlio Coelho exibir orgulhosamente a Praça Almeida Garrett como domicílio da sede social da sua empresa. O actual nome é um rebaptismo conseguido nos anos 30 do passado século quando o Dr. Raúl Teixeira solicitou à Câmara que procedesse à restituição do nome de Praça da Sé. Quando se chamou Praça da Sé pela primeira vez não sei mas foi antes de 1902 porque nessa altura passou a chamar-se Praça Almeida Garrett. Bom, a habitual dança de nomes que as conjunturas políticas sempre ditam.
Também já conheceu vários desenhos. Uns, fruto de concepções urbanísticas, outros, do ego do Presidente da Câmara. A Praça deve ter atingido esse estatuto quando em 1689 os Jesuítas aí colocaram o Cruzeiro. Em 1875 o Presidente da Câmara, naturalmente um fogoso liberal, mandou retirar o Cruzeiro e redesenhou a Praça colocando aí um coreto, bancos de jardim e árvores. Em 1931 um grupo de Bragançanos conseguiu convencer a Câmara a recolocar o Cruzeiro no centro da Praça dentro de uma plataforma mais ou menos elíptica elevada do chão com altura de passeio. Havia também um candeeiro de dois braços na parte de cima da Praça em frente aos ”Coelhos”. Foi esta a primeira Praça da Sé que conheci. Depois o Sr. Adriano Pires, Presidente da Câmara dos anos 60, fez alterações e deu um desenho à Praça muito parecido com o que tem hoje. Chamaram-lhe a “eira de Espinhosela” por causa das ligações que ele tinha a essa aldeia e pelas que a Praça tinha a uma eira. Mas o Sr. Adriano Pires num acto de humildade reconheceu o erro e devolveu a Praça ao anterior figurino. E foi assim que em 2000 o Procon a veio encontrar e a pôs no estado em que está. O que agora vemos não é uma Praça mas antes uma extensão da Igreja, um adro. Mesmo a circulação automóvel não se faz no sentido directo, como é usual nas Praças, mas sim no sentido dos ponteiros do relógio também chamado sentido retrógrado. Ironia.
Foi aí, numa Praça cujo desenho, em 70 anos, nunca ninguém questionou, que muitos jovens fizeram o tirocínio para adultos; foi aí que esperámos, com ansiedade, a saída das pautas de exame; foi aí que começámos a falar de futebol; foi aí que nos iniciámos na política; foi aí que experimentámos o nosso fervor Mariano, embora isto se resumisse à apreciação das do “Lar das grandes” a caminho do “Mês de Maria”; foi aí a nossa feira de vaidades; foi aí que bebemos os primeiros “finos”; foi aí que contámos histórias de caça e pesca; foi aí que, de nervosismo, esfregámos uma mão na outra à espera de uma oral; foi aí que, timidamente, abordámos algumas colegas; foi aí que sentimos o amargo de alguns insucessos; foi aí que começámos a falar de “outras coisas”; foi aí, ”onde me sento e confundo com gente de todo o Mundo…”.
Depois veio o Cruzeiro (café) e o 25 de Abril e a Praça potenciou os ritmos, os sons, as cores, a alegria transmitindo-nos uma vontade frenética de viver. E quando me lembram estes tempos assalta-me uma vontade irresistível de dar os parabéns a “nocês”. (Apanho a boleia desta “boutade” de O´neill para camuflar a imodéstia do auto elogio. Porque eu também estava lá). Claro que estamos a falar da Praça- sociológica, da Praça- centro cívico e essa Praça morreu, não existe. Quando comparada com a Praça desses anos a actual só faz lembrar a amargura do Natal de Torga. Porque esta Praça “…do que prometeu, só bonito na lembrança…”. E porque chegou a este extremo de decadência? Muita coisa há-de ter contribuído mas o arranjo urbanístico que agora patenteia não é de forma alguma alheio a isso. Repare-se que a partir do Procon a Praça desertifica, os comércios fecham e outros abrem falência. Coincidência? Não sei. Mas sei que sociologia não é para tecnocratas. E isto levanta a questão: deve ou não, haver limites à intervenção da Câmara nas zonas antigas da Cidade? Se as intervenções em “casco histórico”, feitas por particulares, estão sujeitas a regras apertadíssimas que a própria Câmara se encarrega de escrutinar porque razão não são as obras da Câmara sujeitas a qualquer tipo de controle? E “Quem julga o Juiz”? perguntariam os Kafkianos. Mas devia haver controle, sejam normas-travão, cláusulas de salvaguarda ou veredito de um painel de peritos, sobre as obras da Câmara em zona antiga esteja ela classificada ou não a fim de evitar desmandos de um que se arroga no direito de pensar que pensa melhor que todos os outros. Note-se que o Estado Português se sentiu na necessidade de reeditar o Conselho Superior das Obras Públicas (Órgão consultivo que se pronunciará sobre as grandes obras do Estado) porque tem medo que o voluntarismo, a força dos “Lobbys” ou tiques de moda possam influenciar negativamente as decisões do Governo. E se essas obras são importantes pelos montantes envolvidos, algumas obras das Câmaras, à proporção, não o são menos com a agravante de envolver diretamente pessoas e isso torna o assunto delicado porque elas são vulneráveis a ligações afectivas com as coisas do seu espaço. Num espaço urbanizado, de há já dezenas de anos, todas as pedras têm uma história, as esquinas um sussurro e até um vidro partido num caixilho empenado fala connosco sem estar lá. São estas ligações, estas raízes, ou antes, a sua ausência que os sociólogos entenderam por responsável nas angústias dos habitantes de Brasília nos anos 70. (como se sabe Brasília era na altura uma cidade nova, sem história) Diziam eles que os Brasilienses viviam, materialmente, muito bem mas angustiados, deslocados como se estivessem numa nave espacial sem qualquer ligação às coisas. “Entre eles e as coisas não havia vizinhança”. É esta vizinhança que é desfeita quando das grandes intervenções em zona antiga.
E tendo a Câmara tanta urbanização recente para dar asas ao obreirismo, à criatividade, à inovação, aos novos conceitos urbanísticos, como se entende esta atracção por intervenções em espaços há muito urbanizados? Mais parece uma pulsão irresistível de apagar o que lá estava. Resquícios medievais de não deixar pedra sobre pedra na cidade conquistada com o medo que o espírito dos anteriores habitantes, presente nas suas construções, contaminasse o espírito dos actuais? Ou como aconteceu há bem pouco tempo em Palmira que o DAESH dinamitou ícones religiosos só porque de uma religião que eles não professam (em tudo parecido com a retirada do Cruzeiro da Praça da Sé pelo Presidente da Câmara em 1875 por este ter sido posto pelos Jesuítas). O Mundo reagiu indignado e eu associei-me a essa indignação sem esquecer, no entanto, que os meus ícones estão em Bragança. Mais modestos mas, ainda assim, ícones. Há, em todos estes casos, uma repulsa pela herança quer material quer espiritual.
Praticamente todas as últimas grandes obras que se fizeram em Bragança sofrem desse mal. Um profundo desrespeito pelos cidadãos e pela herança que a cidade carrega. Mas há uma que particularmente me impressionou. A forma como foram tratados os moradores da rua de vale de Álvaro ou, como também era conhecida, a Av. da Adega Cooperativa. Essa Av. que era uma extensão da Av. João da Cruz deixou de sê-lo por corte do cordão umbilical que a ligava à Bragança antiga provocando um rombo na coesão social, uma alteração dos ritmos do quotidiano dos moradores numa despromoção social que não devia ser possível. A ligação ao “núcleo duro” da Cidade é feita agora apenas por interpostos bairros, como bairro periférico que é, com perdas de bens inegociáveis sobretudo o da consideração. Esta segregação, esta ostracização, esta pena de banimento são, no mínimo, de um iluminismo tardio e assustador.

Manuel Vaz Pires