Festinhas e festivais

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Desde os primórdios da Humanidade o Homem manifestou predisposição para criar formas lúdicas de compensação dos esforços penosos da labuta diária de ver a ver, das agruras causadas pela doença, a fome, a miséria, a danação e intolerância. Se formos a museus refúgio de semióforos pré-históricos e da antiguidade relativos a criação artística dos nossos ancestrais empenhados em minorar tristezas e males da ânima, porque as ditas tristezas não pagam dívidas asseguravam os patriarcas de antanho.

Uma das vibrantes expressividades do génio humano é a música, não vou porque me escasseiam conhecimentos capazes de explicar o atonal e o tonal, nem vou tecer saudades relativamente ao desaparecimento dos festejos à moda do António Fagote, Os Meus Amores de Trindade Coelho, muito menos sobre os bailes tarde fora no dia de honrar o Santo protector contra pragas de lagartas e pardais, trovoadas e enxurradas sem esquecer as saraivadas de bolas rubicundas de granizo, as festinhas mudaram de tom e som, ora predominam os festivais de todos os géneros e formas numa salada fresca e cromática, futurista conforme os dinheiros a gastar pagando as alucinações psicadélicas ao modo de cada qual sem necessidade de cursos de formação porque a condução dos amplexos lúdicos ficam ao cuidado de cada um conforme a sua imaginação e cultura/cultivada seja nas redes sociais, seja no adestramento físico, seja ainda no remanescente de heranças da emigração e/ou de relâmpagos do visto aqui ou acolá.

O espírito inventivo dos artistas de agora não dispensa a herança recebida de mão beijada dos artistas já desaparecidos, ainda há dias morreu João Gilberto que elegeu como lugar favorito para compor a casa de banho da casa da irmã, pois naquela divisão podia desfrutar da imperiosa soledade motivadora da sua inspiração, ficaram os seus discos e ensinamentos a influenciarem os vindouros. No Nordeste têm surgido grupos musicais interessado em promover a música antiga tão estudada entre outros pelo pioneiro Giacometti, ainda bem, mas segundo vou vendo, ouvindo e lendo os festivais em voga dão grande relevo às cantigas brejeiras de contornos estilísticos de «rebimba» também recuperados noutras partes Mundo como está a acontecer na América presidida pelo tramposo Trump a trazer ao de cima as composições demolidoras em todos os sentido da heterodoxia, desde as canções de campo às músicas iconoclastas de Pete Seeger, WoodyGuthrie e Lad Belly voltem à crista da onda apesar dos sues currículos pessoais serem de molde a provocarem enjoos a muito boa gente. À medida que o controverso Trump revela as suas facetas autoritárias explodem composições esquerdistas capazes de entusiasmarem os radicais da vulgata leninista.

Por estas bandas não sendo a Banda do Casaco, são bandas pouco escolásticas, muitas só aguentam uma temporada, animam o Estio cantando nostálgicos que as festinhas dos gaiteiros «arroz pró pote», das bailações aperta-aperta sem cessar, das grafonolas, valem na justa medida de valerem no referente histórico da evolução do lazer, agora impera o conceito de o futuro ser ontem apesar de todos recearem o cruel e implacável fluir temporal.

Imperiosas obrigações de cortesia nos últimos meses assisti a alguns festivais, digo assisti porque não participo na encenação dos mesmos além de os meus ouvidos ficarem furibundos dada a batida forte dos intérpretes, prefiro observar de longe e cair na tentação de estabelecer comparações. Elas são odiosas, apesar de o serem ninguém lhes escapa. E, lá vem o exercício demagógico – um concerto do Caetano Veloso ou do Tom Jones -, rompem o malfadado calendário do tempo, persistem na nossa memória, podemos recordá-los no nicho da felicidade perene, enquanto outros caem no olvido mal acabam. Se dissermos isso em determinados círculos recebemos sorrisos de mofa, comentários de bota abaixo, entenda-se de elástico, retrógados companheiros do velho do Restelo observador da saída da época dos descobrimentos. E, não têm direito à sua razão estas pessoas? Têm.

Durante muitos anos privilegiei ouvir no intuito de aprender e distinguir a música clássica, o jazz no início no intuito de acompanhar o cânone em voga, posteriormente porque passei a gostar (nunca esquecerei uma dica do Zé Montanha Rodrigues sobre um extraordinário pianista de jazz inovador e branco), sem sombra de pecado fui atraído pelo ritmos do folk, com algum remorso comprei e agradaram-me discos de música latino-americana, desde o tango às dolentes árias de Augustin Lara que compôs Maria Bonita em honra da formosa mulher, a devoradora Maria Félix, até gostar de Lana del Rey.

Ópera é para operários ensinou a bragançana Margarida Cepeda ao meu filho Francisco, a ópera do malandro escreveu Chico Buarque de Holanda, a ópera desempenhou triunfante papel na reunificação da Itália, o «teatro cantado» é considera espectáculo das elites, nestas terras os festivais dedicados ao bel canto está confinado a reduzido número de localidades, os públicos informados não abundam, todavia seria interessante ver os programadores municipais e da província transmontana procurar incluí-lo nos guiões mesmo que a título de excepção a contrariar a regra de o que não conhecemos evita-se.

A música nas suas variadas entonações e intonações ultrapassa todas as barreiras menos a da surdez, a sua universalidade independente da raça, da cor, da religião, dos modos de vida, consegue suscitar amores, paixões, ciúmes, invejas, enfim, tudo quanto leva a criar, a inventar, a sermos Mulheres e Homens e as nossas circunstâncias. As festas íntimas, as festas grandiosas, as festinhas sucedâneas, corporizam-se agora nos Festivais. De ao pé da porta, de longe, numa aliança entre o passado e o futuro, no presente pois a pousada da sexta felicidade deve ser para todos, para lá do filme assim intitulado.

Armando Fernandes