O Terreiro do Paço e os Porcos – episódio I

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Ter, 13/12/2005 - 14:55


E se de repente o Terreiro do Paço quisesse limpar do mapa pecuário todas as pequenas explorações de suínos familiares de Trás-os-Montes? Poder-se-ia falar em autêntico extermínio, o que talvez seja uma apreciação um pouco excessiva!

Poder-se-ia falar mais em desconhecimento da realidade rural! O que já é habitual, mas ao qual temos dificuldade em habituarmo-nos, recordando, a título de exemplo, que na última publicação oficial do Ministério da Agricultura, datada de 2004, apenas constam 84 explorações de suínos familiares em toda a região Trás-os-Montes e Alto Douro.
A criação milenar destes magníficos animais está entranhada na cultura tradicional transmontana e ainda hoje é uma realidade, existindo milhares de pequenas explorações, muitas delas de animais de raça bísara ou cruzados, que transformam as beterrabas, batatas, abóboras, centeio e castanhas em suculenta carne e toucinho, que mais tarde darão o famoso fumeiro regional, do qual tenho de destacar, pela genuína qualidade, o conhecido “Fumeiro de Vinhais”.
A festa da matança continua a constituir uma das principais festas de Inverno, ponto de encontro da família e amigos e momento gastronómico por excelência.
Sempre considerei que esta tradição deveria ser mantida, sem que no entanto ficasse cristalizada num tempo que já não existe, atendendo a que os hábitos dos consumidores são agora de maior exigência higio-sanitária e que as questões do bem-estar animal estão na ordem do dia. Aliás considero que um animal tão nobre, que transforma a natureza em paladar, deve ter uma morte menos violenta, minimizando a sua dor. Acresce ainda que, com a desertificação do espaço rural, se torna cada vez mais difícil encontrar vizinhos e amigos para a “mata porca” tradicional.
A entrada em funcionamento dos novos Matadouros de Vinhais e Bragança, em 2000, mantendo-se também em funcionamento os de Miranda do Douro e do Cachão, possibilitou um aumento da oferta de capacidade de abate regional e uma maior proximidade às populações locais.
Particularizando a realidade do Concelho de Vinhais, que conheço mais de perto, só no período compreendido entre 2001 e 2005, houve mais de 500 pequenos produtores de suínos que utilizaram os serviços do Matadouro de Vinhais, quer no abate de leitões, que no de porcos “cevados”. Possibilitou-se desta forma que o Matadouro cumprisse uma das principais razões da sua construção, servir todos os produtores da fileira do fumeiro, não só os 78 produtores que possuem pocilgas licenciadas no concelho, mas todos os agricultores que fazem também criação de porcos em regime caseiro.
Com este recurso de abate mais cómodo e também mais económico, muitos trasmontanos têm utilizado os serviços dos Matadouros, transferindo para o dia da entrega e da desmancha da carcaça a festa da matança, podendo assim de forma tranquila degustar os “rijões”, as “sopas da caldeira” e as “iscas de fígado”, com todas as garantias sanitárias.
Neste capítulo, uma das actividades que tem tido um carácter pedagógico, que gostaria de destacar como exemplo, porque se inscreve no sentido evolutivo desta tradição, tem sido a festa da “matança tradicional”, realizada na EB2/3 de Vinhais, que tem contado com a colaboração do Matadouro local, onde os suínos são abatidos, seguindo depois para a escola onde os alunos realizam actividades didácticas alusivas ao tema, aliando a tradição à modernidade.

Atendendo a todo o trabalho realizado nos últimos 5 anos, que tem envolvido técnicos da região, produtores, Câmaras Municipais e também a Direcção Regional de Agricultura, não posso deixar de denunciar a medida agora anunciada, sem aviso prévio e sem auscultar os agentes do sector, a qual determina, em termos práticos, que só poderão continuar em actividade, as explorações de suínos licenciadas, pois só estas serão passíveis de recenseamento, de acordo com o Despacho n.º 10 178/2005.
Reconhecendo, no entanto, a necessidade de adequar de forma mais conveniente os locais onde são criados os suínos e atendendo às condicionantes sanitárias, poder-se-ia encontrar uma solução ajustável ao número de animais criados e à finalidade da exploração, aligeirando os procedimentos para as explorações cujo objectivo principal seja o autoconsumo.
Esta medida administrativa cega, vai deixar de fora milhares de explorações, que deixaram simplesmente de existir administrativamente, não podendo ser alvo de programas sanitários, nem de apoios específicos e não podendo os seus produtores ter acesso às guias de trânsito para abater os animais no Matadouro. Esta medida é extremamente penalizadora para a região, discriminatória para os pequenos produtores e lesiva da Saúde Pública, pois fomenta o abate clandestino.
A aplicação da medida referida e as limitações decorrentes constituem uma inversão de todo o caminho percorrido nestes cinco anos e não são mais do que uma manifestação do centralismo do Terreiro do Paço, um exemplo da política de avestruz que não querendo ver a realidade rural, quer acabar com ela por decreto!

Duarte Diz Lopes