[Alguns dos que lerem estas linhas poderão não entender muito bem o que aqui se pretende, especialmente os mais jovens que nunca passaram pela vida militar… Os da geração anterior a esta do autor até esboçarão um sorriso de ironia porque, muito provavelmente, terão estado em cenários reais em que certamente – aí sim – a vida de cada um dependia inúmeras vezes do espírito de corpo …] Neste nosso tempo de individualismos que parecem cada vez mais exacerbados, vale a pena refletir sobre alguns episódios que, embora ocorridos no âmbito de simples treino militar, não deixam de constituir verdadeiras lições de vida…! Corria o ano de 1978 e o então jovem mancebo que agora se vos dirige, nos seus 20 anos de idade cumpria serviço militar obrigatório, como recruta da Polícia do Exército no Campo de Instrução Militar de Santa Margarida, uma das maiores instalações militares da Europa. Nesses dias de 1978, cerca de três anos apenas após a descolonização das terras do ultramar e numa situação política do país pouco firme quanto à estabilidade governativa, não era ainda suficientemente líquido que as nossas forças militares estivessem livres de regressar ao combate nesses lugares. E, por isso, num instinto coletivo superior, os treinos eram conduzidos ainda como se todos os instruendos estivessem a ser preparados para o mesmo contexto. Pois bem, dos diversos exercícios e provas obrigatoriamente a concluir com êxito, superando, muitas vezes, as capacidades físicas e mentais que até julgamos não possuir, destaca-se este, por parecer oportuno e adequado para exemplificar o que parece andar arredado do nosso quotidiano e se considera verdadeiro “espírito de corpo”, “espírito de grupo” ou até o simples saber “trabalhar em equipa” em situações críticas… Tratava-se de uma prova noturna de orientação, resistência e aplicação das técnicas de ocultação em combate simulado. Depois de um dia normal de treino, já todas as casernas em repouso e silêncio, o toque do clarim para formar quase que pareceu um sonho mau, mas era mesmo verdade! Or- dens para erguer, fardar, pintar o rosto e as mãos com graxa ou carvão de cortiça e em poucos minutos toda a parada estava ordeiramente ocupada por quatro esquadrões de homens preparados para tudo… Passava da meia-noite, recebidas as instruções, levantadas as armas – as famosas espingardas automáticas G3 – e guardada a ração de combate na mochila, cada pelotão foi dividido em duas “patrulhas” de dezasseis homens e coube ao autor a braçadeira branca de “comandante” daquela patrulha. Enfiados nas caixas de carga das Berliet, com o toldo completamente fechado, durante mais de uma hora às voltas e trambolhões, as patrulhas eram largadas em diferentes pontos, distantes do aquartelamento. As regras, muito simples: não poderiam ser detetados e, muito mais importante do que chegar ao quartel em primeiro lugar, era o regresso de todos em simultâneo…! Seria liminarmente desclassificada a patrulha que fosse detetada ou que deixasse para trás um ou mais elementos e penalizada com o fim-de-semana de retenção no quartel, além da desonra do dever não cumprido! Os oficiais e outros graduados instrutores, distribuídos pelo território em posições estratégicas, varriam o horizonte com holofotes tentando descortinar movimentos e, em determinados pontos, quando o grupo inevitavelmente se enfiava em valas não muito profundas, disparavam rajadas de G3, rasantes, obrigando a baixar bem as cabeças e a rastejar colados ao chão com vegetação rasteira de tojos, um arbusto típico daqueles solos, com picos extremamente agressivos. A patrulha incluía ra- pazes mais afoitos e bem preparados fisicamente, ágeis e sem dificuldades em caminhar, rastejar e correr; havia alguns menos resistentes e mais fracos e, como não podia deixar de ser, também os mais pesadões e desajeitados compunham o grupo. Por volta das três da manhã, já bastante cansados e o suor a ardejar nas picadelas por todo o corpo, cientes de estarem no caminho certo e cada vez mais próximos do clarão que se avistava ao longe (que seguramente seria da iluminação dos quartéis e da imensa Avenida do Campo Militar), começaram os mais débeis a ficar para trás, quase com vontade de desistir, enquanto os mais capazes, na dianteira do grupo, se iam distanciando... O comandante da patrulha, em passo-corrida, seguia ao lado da fila de recrutas, com diferentes vontades, capacidades e resistências, mas que tinham de cumprir o nobre objetivo de chegarem todos e… juntos! Investido da temporária autoridade que lhe tinha sido conferida, deu “ordens” aos da frente para abrandarem o andamento e foi à cauda do grupo animar os três ou quatro que se estavam a atrasar. Refrear a impetuosidade de uns e procurar estimular a lentidão e um certo desânimo de outros, foi uma luta verdadeiramente difícil...! Apesar das reclamações e tentativas de desobediência dos da frente, não poderia haver lugar a qualquer “rebelião”, até porque, por força de qua- se dois meses de recruta, a disciplina militar estava já bem enraizada no espírito de cada um. Inesperadamente, um grito de dor, lancinante, de um dos camaradas da frente, fez toda a patrulha parar e… não podia ser pior… a manga da farda, rasgada de alto abaixo por um galho solto de azinheira, deixava antever forte lesão no braço esquerdo… sangrava abundantemente e não parecia coisa nada boa…!!! Sob orientação do co- mandante, prontamen- te foi socorrido! Garrote junto ao sovaco, improvisado com pedaços da própria manga, para con- trolar a hemorragia caso fosse necessário, e a ferida protegida com tiras feitas da camisola interior bem apertadas… Ponderaram desistir da prova e procurar ajuda junto dos instrutores, uma vez que o camarada ferido, embora pudesse caminhar, estava bastante combalido. Mas, tendo em conta que já não fal- taria muito para o objetivo, a decisão do comandante foi de o transportar atravessado nos ombros, o que fariam alternadamente cada elemento do grupo, valendo-se dessa técnica regularmente treinada durante a recruta. Todos anuíram e o comandante tomou a iniciativa da tarefa fazendo o primeiro turno. Retomaram a caminhada, agora apenas em passo acelerado, percebendo bem a união e camaradagem necessárias perante um incidente que bem poderia acontecer em combate real… Excluída já a possibilidade de chegarem em primeiro lugar, pararam para avaliar novamente a situação, já muito próximos do início da Avenida do Campo Militar e, vendo que o ferido se sentia um pouco melhor, decidiram avançar com dois camaradas a ladeá-lo. Amanhecera quando, por volta das seis da manhã, orgulhosamente, os dezasseis homens se aproximaram das traseiras da capela onde começa o asfalto daquela imensa Avenida. Em fila bem alinhada e passo-corrida, batendo com o pé direito no chão, perfeitamente sincronizados numa cadência sonora que se usa nestas circunstâncias para dar força anímica, chegando à parada formaram de imediato à frente do aspirante e do cabo instrutores, encaminhado o ferido, de imediato, para a enfermaria. A satisfação e sorrisos no rosto de todos... a gratidão dos que tiveram mais dificuldades... exprimiam bem o prazer do que sentiam: – Missão cumprida! [Em jeito de “moral da história”, façamos um exercício de “bioecologia comparada”, refletindo sobre o facto de ter sido o “espírito de corpo” que permitiu aos humanos a sobrevivência evolutiva ao longo dos tempos, o que não é muito diferente das estratégias biológicas de diversos grupos de outros animais no seu ambiente natural e de que são exemplos: a manada de elefantes que protege ciosamente as crias e não abandona os mais velhos; numa vara de javalis, conduzida pela fêmea dominante, o espírito gregário é determinante para o sucesso reprodutivo e proteção dos juvenis; uma alcateia de lobos é liderada pelo macho alfa, com astúcia e inteligência, não deixando nenhum elemento mais frágil à sua sorte.] Fica provado: Juntos, somos mais fortes e sobrevivemos!
Agostinho Beça