O mundo das Catarinas

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Muito boas tardes. Espero que estas palavras vos encontrem de boa sáude e a desfrutar o Verão das terras transmontanas do nordeste. O céu vivamente azul, tardes ardentes que dão demoradamente lugar a noites geladas, as andorinhas no ir e vir dos beirais, as ribeiras correndo com maior ou menor timidez, as melancias e o que ainda se vai colhendo das faceiras, gentes a avivar as aldeias, crianças em correria ao fim das tardes, pessoas que durante a noite se reunem ao café ou para os já habituais passeios sem relógio envoltos pelo abraço faiscante das estrelas luzentes. Tudo muito característico e muito bom de se viver por estes meses. Não são, contudo, vivências que para nós farão parte deste ano peculiar que distanciou efectivamente e afectivamente as pessoas. Tudo passa, haja saúde, nem é mau ano de todo. Hoje queria falar-vos de Catarina, uma das melhores amigas que a minha filha tem em Portugal, para além do primo André em Almada a um passinho do mar e das gloriosas tardes de praia, dos primos Henrique e Rodrigo entre a cidade e o campo, das bonitas Mariana e prima Leonor, e por vezes a Sara, com quem vive os verões de Avelanoso, de bonecas a tiracolo para trás e para diante, trocando roupas e refugiando-se do sol nas casa das amigas, circulando livre como em cada vez menos cantos deste mundo apartado se pode fazer. Esquecia-me das filhas dos padrinhos com quem também tem épicos e longos dias de brincadeira enquanto os pais confraternizam acompanhados de petiscos e néctares diversos. Tudo muito boa gente. A Catarina é uma menina de uma família chinesa que vive numa terra algarvia tocada pelo mar. Os pais têm uma loja e ela passa também os verões por ali, com os imãos mais novos e os avós, entre a casa e a loja e a pequena biblioteca da Sociedade Recreativa Luzense onde pode ler, coisa de que gosta particularmente, ou jogar alguns jogos de computador. A Catarina é uma menina de imensa doçura e educação, sempre com o “por favor” e o “obrigada” nos tempos certos e com uns modos tão delicados e apropriados que quase parecem em desuso no nosso país. A Catarina e a Beatriz brincam muito bem juntas e entendem-se de uma forma muito profunda. Para a sociedade onde vivem a Catarina é uma chinesa, embora tenha nascido em Portugal, enquanto a Beatriz é uma estrangeira (uma pessoa de fora), embora esteja na China desde o primeiro ano de idade. Ao brincar falam em mandarim umas vezes e noutras em português, mudando o registo de acordo com as brincadeiras ou consoante o que lá no mundo delas entendem que se ajusta melhor... Neste momento estou a ouvir rádio e começou a tocar a “English American in New York”, do Sting. É exactamente sobre isto. Até prefiro a versão da mesma música do Tiken Jah Fakoly “Africain à Paris” em que ele escreve a carta para a mãe desde uma pensão de três “etóiles” dos subúrbios. Não é o estar perto ou estar longe, não é sobre gostar-se mais ou menos de onde se está. É o sentimento de se ser estrangeiro, a identidade, a impressão de que se é doutro lugar, algo de que muitas vezes nem nos lembramos mas que os outros, os que jogam em casa, nos recordam ou fazem ver. São factos da vida de quem anda pelo mundo ditos sem querer despertar qualquer lamechice. Mais do que nunca andamos ligadíssimos ao mundo por todos os lados, consumimos, dizemo- -nos globais, viajados, conhecedores, então porque paradoxal raio temos de ver o quintal onde nascemos como único lugar onde desenrolar as nossas vidas? Se assim tiver de ser que seja como dizia o Padre António Vieira há quatro séculos: “para nascer Portugal, para morrer o mundo”. Note-se que apesar de bipolar o humano consegue ser um ser admirável e isso pode-se constatar na amizade de duas crianças, duas coisas incompletas com escassos anos de vida. Uma empatia que não se constrói de conversas ou palavreado como nos adultos, uma solidariedade que se estabelece natural e compassiva porque despida de acessórios. A Beatriz é uma menina que vive longe e que nas suas turmas de escola tem avançado sempre perante os desafios de ser estrangeira no meio de dezenas de colegas. O mesmo para Catarina, talvez com menos colegas de turma mas não devendo nada em qualidades a nenhum deles. Mesmo assim, por vezes a Catarina deixa escapar, na sua voz sempre calma, que algumas mães não deixam que os filhos brinquem com ela. Nós adultos esforçamo-nos bastante em fazer deste mundo um lugar mais repulsivo, desencaminhando as crianças dos seus mais livres e recomendáveis propósitos. Por este planeta já passou tanta gente com ideias interessantes para a humanidade, já avançámos tanto em tantas coisas, mas o que é verdadeiramente importante para o nosso futuro pouco ou nada muda. A ignorância nunca nos irá abandonar e com ela a segregação, a indiferença, a desconfiança e todas as coisas que nos desequilibram e diminuem. E o problema é que já não se trata tanto da ignorância dos livros, da iliteracia, que antes se julgava ser a origem de todos os males, mas uma ignorância intrínseca, numa era de informação, que se vai fossilizando meio dissimulada e por isso mais difícil de desincrustar. Que profeta poderá vir livrar os nossos espíritos destes males? Que vacina nos fará imunes a estas enfermidades? Que progresso nos trará respostas para estas perenes angústias? O mundo decidiu que Catarina e Beatriz teriam um dia de se juntar e para isso escolheu uma pequena aldeia do litoral algarvio. Talvez tenha sido o mundo, talvez tinha sido o mar. Diz o ditado que “Deus os cria e eles se juntam” e assim é nem que seja só para brincar durante um par de dias por ano. No mundo das Catarinas todos os outros mundos ficam de fora. Nenhum outro interessa, nenhum outro é necessário. Porque a amizade não se mede aos palmos nem à altura dos muros. A todos, um abraço!

Manuel João Pires