O crime Robles

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Ricardo Robles, dirigente do Bloco de Esquerda e candidato à Câmara de Lisboa por esse partido, comprou uma casa por 300 mil euros, fez obras no valor de 700 mil e agora pedia por ela 5,1 milhões de euros. Esta sequência de procedimentos, que parece configurar um caso vulgar de especulação imobiliária, levantou uma onda de protestos contra a atitude de Robles. Políticos do PSD pediram a demissão de Robles, outros agitaram a bandeira da “falta de ética” e Assunção Cristas cavalgou este mote dando-lhe verdadeira amplificação. Mesmo o Dr. António Costa não se coibiu de dar a sua alfinetada chamando-lhe “pecadilhos”. Ora, como entendo que o mundo não é só preto e branco vou tentar desmontar as acusações que tornaram um vulgar negócio no caso que tanto agitou o mundo político.

O PSD pediu a demissão de Robles dos cargos públicos que ocupava. Pedir a demissão de cargos públicos como sanção por actos privados praticados e que, além disso, estavam perfeitamente cobertos pela lei é coisa que nunca tinha visto. Ressalva-se, aqui, a atitude de Rui Rio que nas suas enigmáticas palavras, possivelmente contra a devassa da vida privada dos políticos, disse “quem não deve também tem que temer”.

Assunção Cristas acusa Robles de “falta de ética”. Ora, se o comportamento de Robles respeita escrupulosamente a lei, então a acusação não se pode virar para Robles mas sim para a lei. E, de facto, a lei da autoria da Dr.ª Cristas, que contempla a completa liberalização do alojamento local e a facilidade obscena no despejo dos inquilinos, essa sim, tem um défice de ética que não devia ser aceite, até constitucionalmente. Robles nem é um especulador porque não tem isso por actividade. Fez, tão só, preço a uma coisa dele o que me parece perfeitamente legítimo. Mas as centenas, senão milhares, de especuladores, para quem, aliás, a lei foi feita, nunca ouviram uma palavra de recriminação da Dr.ª Cristas porque esta entende o seu comportamento como eticamente adequado. Como pode um líder partidário ter dois graus de exigência ética? Uma para os da sua família política e outra para a esquerda. Será que acredita na “superioridade moral dos comunistas” e daí, portanto, para esses maior exigência?

Mas voltando ao caso em si. A compra do imóvel e a sua requalificação são actos que não oferecerão, eticamente, quaisquer objecções, seja qual for o quadrante político em que se insira o agente das operações. O valor do montante porque seria vendido o imóvel é que levanta questões a alguns, só, porque o vendedor é de esquerda. Até um jornalista de um jornal diário tentou compor o valor real(?) do imóvel e somou o valor da compra com o custo das obras mais o juro do dinheiro mais a valorização do imóvel e deu-lhe 2,5 milhões. Haveria um remanescente de 2,6 milhões por explicar. Para ele um verdadeiro homem de esquerda podia vender o imóvel por 5,1 milhões mas teria de dar à APADI ou à Cruz Vermelha 2,6 milhões. Isto é absolutamente grotesco. Até porque, como estes números não são absolutos, muitos achariam que mesmo 2,5 milhões seria o valor de uma especulação sem limites. Aí entrava a história do “velho, o garoto e o burro” que só acabava quando o verdadeiro homem de esquerda perdesse dinheiro no negócio. Como poderá, doravante, um homem de esquerda fazer um negócio? Será que tem de perguntar a um painel de peritos o real valor da coisa para, no caso de o negócio se fazer por montante superior a esse valor, dar a uma ONG ou a uma instituição de solidariedade o respectivo diferencial? Talvez assim, a direita entendesse que estavam salvaguardados os valores de esquerda, na esquerda. Curiosa esta preocupação com os valores éticos, dos outros.

Não foi a esquerda que inventou o capitalismo, os mercados e a especulação. Mas vivemos num mundo em que não podemos fugir deles. Além disso também não podemos ser homens de mercado na compra para ser samaritanos na venda. “Já que estamos no inferno queremos ver o Diabo”. Mas a direita sempre teve uma prática continuada de tentar embaraçar as pessoas de esquerda que têm desafogo económico. Tratam-nos como se fossem traidores porque se tem dinheiro deveriam ser de direita. “Dai o dinheiro aos pobres” é uma das invectivas recorrentes. O que é um facto é que as pessoas de esquerda que não têm constrangimentos financeiros têm uma espécie de complexo de culpa que a direita sabe explorar, como se viu na reacção, perfeitamente confrangedora, do Bloco de Esquerda a este caso. Aqui, honra e louvor ao desassombro e frontalidade do jornalista César Príncipe que ia às manifestações do Partido Comunista de Rolls Royce. Um dia confrontado com a eventual incompatibilidade de ter um Rolls Royce e ser comunista, respondeu: “eu tenho muito dinheiro cuja proveniência é absolutamente inquestionável e além disso gosto muito deste carro”.

A esquerda não fez voto de pobreza nem nunca renunciou aos bens terrenos. O único compromisso que tem é com ela própria e com o Mundo e é de tentar pelos meios possíveis que a riqueza seja distribuída de forma cada vez mais justa, mais equitativa até que possamos um dia declarar como Moustaki, “… l’état du bonheur permanent et le droit de chaque un à tout les previlèges.”

 

 

P.S. – Afinal o negócio não se fez, mas o assassinato de carácter, esse sim, concluiu-se com sucesso. Mas se o comportamento de Ricardo Robles foi tão eticamente desviante face ao que é socialmente aceite, então seria de esperar que os partidos, que tão veementemente o atacaram, quisessem plasmar na lei normas-travão ou cláusulas de salvaguarda que impedissem que procedimentos como os de Robles fossem replicados. Mas nem uma palavra mais. Houve uma vítima mas nada foi alterado. Apesar da algazarra o País ficou na mesma, só ficámos a conhecer melhor os intervenientes porque “quando Pedro me fala de Paulo fico a saber mais de Pedro que de Paulo”. (S. Freud)

 

Manuel Vaz Pires