O carteiro já não toca duas vezes

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Houve um tempo em que a camioneta do correio chegava sempre ao entardecer a muitas aldeias do nordeste. A criançada digladiava-se para conseguir levar as malas da correspondência até à casa onde se fazia a distribuição, em voz alta e na presença de meia aldeia ansiosa de notícias dos familiares e amigos que estavam longe. Em tempo de guerra e de emigração entregavam-se os aerogramas, as cartas, cartas de avião, bilhetes-postais, encomendas, alegrias e tristezas.
A lendária figura do carteiro honrava a sua profissão e a correspondência era sempre entregue aos seus destinatários, mesmo que o endereço estivesse incorreto, ou insuficiente.
Eram tempos difíceis, mas em que os Correios estavam humanizados e os carteiros conheciam as pessoas, lembravam-se do seu rosto, do seu nome e sabiam de vidas e de ausências.
Chegou o código postal e a máxima era bem apelativa no sentido da rapidez e da eficácia. “Código postal, meio caminho andado”.
Mais tarde, chegou a toponímia e os “números de polícia” ao meio rural e em nome da eficiência e da eficácia tudo se complicou. E o carteiro que todos os dias entrega cartas às mesmas pessoas que conhece e com quem fala, devolve correspondência porque o nome da rua não está correto, ou falta o número de polícia, ou o código postal. E isso acontece, não só no nordeste, mas em todo o país. Claro que há honrosas e lúcidas exceções. Talvez sejam ordens superiores que o carteiro tem que cumprir, escrupulosamente, para não se arriscar a perder o seu precário emprego, muitas vezes de contratado. E a carta volta para trás e esteve tão perto. Devem estar a brincar connosco.
Pessoalmente vou quase todos os dias aos CTT de Bragança. As chefias e os funcionários são duma simpatia e eficácia quase heroica, trabalhando para além do que é humanamente aceitável perante o número de utentes que vão à referida estação dos CTT a determinadas horas do dia. Os quatro ou cinco postos de atendimento que estão disponíveis são manifestamente insuficientes para as multidões que com frequência aguardam, pacientemente, a sua vez. E então quando a máquina que disponibiliza as senhas de atendimento avaria, as coisas complicam-se e formam-se filas enormes, intermináveis. Mas o técnico reparador não tem pressa nenhuma e a máquina fica uma semana inteira inoperacional. Os bragançanos são pacientes, pensarão as esclarecidas inteligências lisboetas. Mais uma vez devem estar a brincar connosco. A paciência tem limites.
Depois, a estação dos CTT onde era presumível que se tratasse de assuntos relacionados com a correspondência, foi alargada a outros serviços sociais o que até se compreende, pois facilita a vida aos utentes. Mas o negócio não para e os CTT invadem a atividade dos livreiros e dos banqueiros. Quanto a mim trata-se de uma concorrência desleal, sobretudo no setor dos livros. E mais, na imensidão dos títulos que a estação dos CTT de Bragança disponibiliza não se encontra à venda um único livro dos autores locais. O capitalismo e o lucro impõem-se à divulgação da cultura e da criação literária do distrito. Questões de escala. Sei de escritores da nossa terra, já conhecidos, que pediram por escrito à administração dos CTT que os seus livros fossem vendidos, à consignação, pelo menos na estação de Bragança. A resposta lamechas não se fez esperar agradecendo o contacto, mas tal pedido não se insere na política de vendas dos CTT. Aqui faz todo o sentido chamar o Padre António Vieira, o jesuíta, para de novo ouvir o sermão aos peixes pregado em São Luís do Maranhão: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
E assim o nordeste, paulatinamente, vai perdendo serviços, vai perdendo recursos, desumaniza-se, desertifica-se e em breve muitas aldeias fecharão as portas. Por isso, nós, não podemos assistir impávidos e serenos a este drama enorme, imensurável que compromete o futuro. Temos que olhar para além do “nevoeiro” de que nos fala Fernando Pessoa e gritar e agir com convicção: transmontanos “é a hora”.

Fernando Calado