Vimos que António Ledesma e Beatriz Nunes tiveram uma filha que batizaram com o nome de Maria Nunes, a qual casou com Manuel Franco, rendeiro, e ambos estagiaram nas cadeias do santo ofício, entre 1660 e 1662. (1) Viveram em Bragança e nesta cidade criaram um filho, batizado com o nome de António Franco Machado e 3 filhas, que vamos apresentar: Isabel Nunes, que casou com José Rodrigues, o Riqueza, de alcunha e morreu nos cárceres da inquisição de Coimbra, em 12.4.1696, um mês depois de ser presa. Beatriz Nunes, que casou com Roque Rodrigues, que foi obrigado do açougue em Bragança e faleceu, antes de 1685. Jerónima Ledesma, que casou com Fernando da Fonseca, natural de Sevilha e morador em Bragança, casal que vamos acompanhar. Por agora fiquemos em Bragança, no mês de Junho de 1683, com Maria Álvares, moça solteira, criada de servir, prestando o depoimento seguinte, perante o comissário da inquisição, Belchior de Sá Cabral, abade de S. João: - Disse que há um ano que está em casa de Roque Rodrigues e Beatriz Nunes, com os quais mora também Fernando da Fonseca e sua mulher Jerónima Ledesma; e que as sobreditas pessoas, umas e outras, todas as sextas-feiras e sábados varrem as casas pela manhã e à tarde, (…) e nos outros dias da semana as mandam varrer a ela testemunha, pela manhã e à tarde. E vestem camisas lavadas e as dão aos maridos, porém eles as não vestem sempre; e que outrossim dão também camisas lavadas aos filhos, como é Isabelinha e António, filhos do dito Roque. E às sextas-feiras, tendo carne em casa, a assam ou cozem, mas ela não lha vê comer, porque a mandam para a rua. E que isto fazem sem estar doentes. E que, falecendo Manuel Franco, pai das sobreditas, em casa dos sobreditos não comeram carne dentro de um mês; e nessa ocasião estava ali também António Franco Machado 4 dias e também não comeu carne. E na casa de seus amos, todas as noites acendem duas candeias de azeite e as poem aonde uns dormem e outra aonde dormem os outros e as deixam estar acesas até por si se apagarem. (2) Foi o início da tragédia para esta família, que todos foram presos nos anos seguintes pela inquisição de Coimbra, (3) onde Isabel morreu, como atrás se disse. Levada para a inquisição de Coimbra, em 11.4.1685, Jerónima Ledesma manteve-se negativa. Ano e meio depois, em 16.10.1686 foi enviada para o tribunal de Évora, onde continuou negando todas as acusações que lhe faziam. Em 26.2.1688, foi despachada para Lisboa, certamente para ajudar a engrandecer o auto-da-fé que se estava preparando para o dia 14 de Março de 1688 e que se queria imponente. Decidiram os inquisidores que Jerónima Ledesma, por se recusar a confessar suas culpas e delas pedir perdão, seria entregue à justiça secular, para ser queimada. (4) Na véspera daquele dia, estando já de mãos atadas, ela decidiu confessar, justificando o seu silêncio de anos “pelo amor que tinha ao seu marido e a seus filhos”. E fez a seguinte confissão: - Disse que há 9 anos, em Bragança, em sua casa, com seu marido, Fernando da Fonseca, cristão-novo, mercador, natural e morador na dita cidade, por ocasião de ela confitente andar pejada da primeira criança e jejuar naquele dia, sem comer nem beber senão à noite, ao Deus de Israel para que lhe desse bom sucesso no parto, e lhe pôr a mesa para seu jantar, e ela confitente o não querer fazer, lhe disse o dito seu marido que porque não comia nem jantava no dito dia; e ela respondeu que não comia pela razão da observância da lei de Moisés e a crença lhe durou até e anos e 4 meses antes da sua prisão. (5) Poucos dias depois desta e doutras confissões de Jerónima, foram presos pela inquisição de Coimbra o seu marido, Fernando da Fonseca, e o seu irmão, António Franco Machado, que deram entrada nas celas daquele tribunal em 6.4.1688. Fernando Fonseca tinha então 35 anos. Em Bragança, “ao Deus dará” ficavam seus filhos, um menino e 2 meninas, sendo a mais velha de 6 anos. Sim, que a casa onde moravam e todos os bens que tinham lhe foram sequestrados. De resto, do inventário que então se fez consta apenas um macho, que valia 40 mil réis e uns móveis de pouco valor. Tinha era dívidas, no montante de cento e tantos mil réis, referentes a caixas de açúcar que lhe tinham fiado Bento Ribeiro Torrado e um Jacques, dois mercadores do Porto. Por mais de um ano permaneceu Fernando Fonseca nas celas da inquisição de Coimbra onde foi posto a tormento, que durou um quarto de hora, “dando-lhe um trato perfeito e outro corrido”. Compareceu no auto de 21.8.1689 sentenciado ao pagamento de 20 mil réis de custas do processo, cárcere a arbítrio dos inquisidores e penas espirituais, uma pena relativamente leve, significando que soube defender-se das acusações que lhe fizeram a sua mulher e a criada, como atrás se viu. Posto em liberdade, Fernando Fonseca logo deixou o país, internando-se por Castela. Nesse mesmo ano estava já em Medina de Rio Seco, apresentando- -se como “tratante de açúcar”. No ano seguinte entrou ao serviço de Gabriel de Sola, seu primo, “rendeiro geral dos estancos de tabaco do bispado de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora, onde vendia e tinha os Millones”. Escusado será dizer que nos estancos do tabaco de toda a região estavam providos familiares e amigos, numa intrincada rede de negócios e cumplicidades religiosas. António Franco Machado, por exemplo, que, em 1690 estava na cadeia de Coimbra com Fernando da Fonseca, certamente acompanhou o cunhado e logo foi provido no estanco de Benavente. Porém, não foi em sua casa que o cunhado Fernando Fonseca pousou, “em Março ou Abril de 1691” quando Gabriel Sola e sua mulher o encarregaram de “ir a Benavente buscar umas trutas de que necessitavam para regalar umas pessoas”. Foi em casa de João Dias Pereira e Guiomar Lopes, sua mulher, ele do Mogadouro e ela de Rebordelo, outro elo importante da cadeia ou rede familiar no monopólio da venda do tabaco naquela região de Castela. Aliás, a generalidade das informações que temos sobre a vida de Fernando da Fonseca depois que saiu da inquisição de Coimbra, colhemo-las no processo de Guiomar Lopes. (6) E entre os favores prestados pelo Fonseca a Dias Pereira conta-se a compra de uma escopeta em Guimarães, que lhe levou para Castela. Fernando Fonseca seria homem de confiança de Gabriel Sola, acompanhando-o mesmo em deslocações distantes, como foi uma vez a Bragança “no ano de 1691, segundo lhe parece, com Sola, sua mulher, cunhada e sobrinha e seus 5 filhos e passando por Benavente, foi vê-lo à pousada o dito Pereira e a sua mulher enviou uns doces a Sola e a sua mulher, dizendo a mulher do Pereira que não podia vir vê-los por estar de visita a um convento de monjas”. Trabalhavam em rede mas o fio que verdadeiramente unia a “gente da nação” era a crença na lei de Moisés. E havia sempre alguém à espreita para os “meter na inquisição”, que, em Portugal e Castela, usava a mesma linguagem e os mesmos métodos. Fernando Fonseca, Gabriel Sola e vários outros familiares foram novamente presos. Aqueles dois foram condenados à morte, como se vê da certidão seguinte: - D. Juan de la Puebla, notário do santo ofício da inquisição de Valhadolid, certifico que estando celebrando o auto particular da fé no convento de S. Paulo desta cidade em 10 de Março de 1701, (…) saíram no dito auto em pessoa, com insígnias de relaxados: Gabriel de Sola, natural da Guarda, reino de Portugal, rendeiro geral dos estancos de tabaco no bispado de Salamanca, Ciudad Rodrigo, Ávila e Zamora, onde vendia os millones, de 56 anos. Ana Maria Conde, aliás, de Vilhena, sua mulher, natural de Zamora, vizinha de Salamanca, de 46 anos. Fernando da Fonseca, natural de Sevilha, vizinho de Salamanca, tratante de açúcar e lenços, de 46 anos. (…) Todos os quais no dia referido foram relaxados em pessoa à justiça e braço secular, como consta de suas sentenças e causas, que estão na câmara do segredo da inquisição de Valhadolid a que me remeto.