Há anos, no decurso de uma missão de trabalho na ilha de Moçambique, impressionaram-me as serenas e ao mesmo tempo vistosas pinturas a branco, de enorme pureza, dos rostos das mulheres levadas a cabo em dias determinados e a propósito de acontecimentos singulares no quadro do calendário das efemérides da comunidade. A qualidade das pinturas mostravam aquilo que deviam exibir, ocultavam o que havia a ocultar no exercício da revelação aos iniciados, de a saliência pictórica postergar o referido culto ocultado.
Não prossigo neste registo, trouxe o exemplo do visto e perscrutado na ilha cantada por Camões e Rui Knopfli poeta substancioso que ainda conheci, porque nós os transmontanos quando um de nós salta na corda bamba e se estatela tendemos a, das duas uma: ou soltamos imprecações contra o desastrado potriqueiro, o qual coloca em causa a destreza cerebral de todos nós – os transmontanos – transformando-nos em alvos de chacota, ou então conseguimos esgrimir argumentos de comiseração ronceira, hipócrita, deslavada de emoção. As duas opções corporizam a não assumpção da crueza da célebre frase de Eça: «debaixo do manto diáfano da fantasia a forte nudez da verdade». No meu modesto entender os sonoros casos ocorridos envolvendo transmontanos acusados e dois condenados por incumprimento de normas de boa cidadania e leis em uso devem ser apreciadas e peneiradas como imperfeições próprias da condição humanas sem fugir ao julgamento dos decisores, os juízes. O problema adquire a classificação de nó-górdio quando os acusados de graves desmandos são juízes.
Nós não podemos ter receio de emitir opinião acerca daquilo que nos causa desconforto, que nos obriga a guardar de Conrado prudente silêncio, que macula a nossa condição de transmontanos, para o bem e para o mal, se me permitem a incursão lembro o livro, explosiva obra, «Para Além do Bem e do Mal» útil desfibrador das íntimas razões que levam à prática de acções merecedoras de censura.
Todos conhecemos o valor dos valores numa sociedade de farândola envernizada. Todos conhecemos exemplos de nem tudo o que reluz é ouro, lemos opiniões a solicitarem o regresso dos carrascos, no entanto, conseguimos ver o argueiro na vista do vizinho e não ver o cavaleiro na nossa. Declarado inimigo que sou de estultos moralismos, amigo do meu amigo esteja ou não isento de profanação dos normativos em vigor, prefiro a crítica aberta, incisiva, até rompedora de relações sociais (não de amizade), ao fingimento de nada ter acontecido. Nós, os transmontanos também pisamos terrenos movediços, até ousamos atravessar lameiros ao volante de carros desportivos italianos ou não, possuímos qualidades mas não podemos esquecer o cerne dominante no monumental romance de Musil, «O Homem Sem Qualidades» numa Áustria culta, sofisticada, Pátria de génios governada por um Imperador teimoso, incapaz de perceber os sinais dos tempos. E, por cá? Por cá a sucessão de episódios a enodoarem as elites (políticas, económicas, jornalísticas, militares e judiciais) não augura nada de benéfico para os menos capazes, humilhados e ofendidos. O tempo, esse grande sage, fazedor e escultor, no juízo de Yourcenar, o irá dizer. Quando? Os apressados consultem os oráculos. O de Delfos não, desolado vê e assiste ao drama dos migrantes.