As crianças do nosso descontentamento

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A aplicação da justiça nos países democráticos impõe e implica que os juízes sejam espíritos completamente autónomos e livres. Isto leva os juízes a terem de formular as sentenças com absoluta sinceridade sobre as polaridades que compõem e recompõem o objecto da causa, até de um modo confessional, em soledade, de forma a nenhuma polaridade ser postergada devido a paixões, animosidades ou desejos íntimos. O juiz deve inspirar confiança, respeito e admiração sem temor ou tremor.

Não sou entendido em leis, mamei de pequeno noções de justeza de conduta nos provérbios, aforismos e sentenças escoradas na experiência de todos quantos foram fazendo o seu caminho caminhando (obrigado poeta de frondosa e cinzenta cabeleira), por isso mesmo repugna-me a farândola colorida hoje em voga nos tribunais onde várias decisões me causam estranheza, uma delas aberrante a merecer explicação a todos quantos fazem o favor de ler aquilo que publico nas páginas do Nordeste, Façam o favor de ler a ajuizarem sobre a razão de trazer a terreiro a abjecta sentença de um juíza da comarca de Lisboa.

Na edição do dia sete deste mês do PÚBLIVO na secção cartas ao Director o leitor Jorge Morais publica uma na qual refere a hedionda tortura (todas o são, mas algumas conseguem atingir um grau superior a outras) perpetrada no corpo de um bebé de dois anos por um individuo que o queimou utilizando cigarros e aplicando o acto horripilante nas plantas dos pés, nos órgãos genitais e nos olhos da criança de tenra idade. Eu sei, nós sabemos quão grandes e bárbaros são os atentados contra as crianças, nas minhas andanças pelo Mundo testemunhei a indiferença ante «a banalidade do mal» tendo como objecto as meninas e os meninos que tiveram a desdita de nascerem em territórios inóspitos, filho de gente a sobreviver na miséria, sem assistência e comida, porém no ano de 2019, em Portugal, membro da Convenção dos Direitos da Criança, um juiz condenar a pena suspensa o facínora torturador ultrapassa tudo aquilo que podemos esperara de um Magistrado autónomo e livre.

Há anos participei na fundação do Instituto de Apoio à Criança, colaborei em iniciativas da UNICEF, sempre no entendimento de as crianças não terem culpa dos desvarios e ignomínias dos adultos, de merecerem total atenção material e afectividade, por isso mesmo não consigo compreender o insensível juiz, certamente, não tem filhos, preferindo as teorias à prática do bom senso, do bom gosto, do predomínio do amor para com as crianças ao exemplo da extremosa mãe envolvida numa questão de maternidade julgada pelo re Salomão. Lembram-se?

Remeti um pedido de intervenção do IAC no Conselho Superior de Magistratura, esperançado em saber se o autor da sentença foi interrogado e no meu ver sancionado pelo desamor evidenciado contra um inocente menino desprovido de amor maternal, no entanto, acredito no empenho do CSM na censura do ocorrido.

Eu não consigo imaginar a silhueta do distraído ou sonolento juiz como representante da Senhora de olhos vendados que aparece em numerosos edifícios onde se acolhe simbolizando a justiça, uma justiça justa, rigorosa, logo igual para todos, embora na prática nunca devemos esquecer Orwell – todos os homens são iguais, uns mais que outros –, a advertência sublinha na verdade uma apreciação cínica de profissões de alto risco quando mal interpretadas logo más na aplicação da doutrina sem verificação das abomináveis práticas em seres frágeis, sem possibilidades de susterem os agressores.

O Natal aproxima-se, trazê-lo a terreiro no afã de desencadear lágrimas e suspiros a empolarem o sucedido não faz parte do meu ideário crítico, a saída do jornal assim o determinou, Nada mais.

Aos leitores e aos jornalistas e Director do jornal votos de Boas Festas.

Armando Fernandes