Não há Saúde sem Saúde Sexual

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A sexualidade é um conceito que tem captado a atenção da humanidade desde há muitos séculos, estando revestida de mitos e crenças, à mercê de múltiplas interpretações e na base de leis e de reformas políticas e sociais. A sua presença tem sido constante nos discursos e na produção cultural das várias sociedades ao longo dos tempos, alimentando e reinventando-se em crenças e mitos que, estando ainda hoje muito presentes no nosso universo atual, podem estar na génese de algumas dificuldades ou disfunções sexuais.

Esta constância da sexualidade nos discursos da humanidade ao longo dos tempos, é em si mesma reveladora do quão nuclear ela é na vida em geral, mas sobretudo na vida humana.
O interesse pela sexualidade começou a instalar-se na comunidade científica, nomeadamente da comunidade médica, sobretudo desde o século XIX. Esse facto permitiu que se retirasse a sexualidade do plano do místico e do religioso, no entanto essa transição não ficou alheia de críticas, como a de Foucault, que notificou um abandono da arte erótica em favor de um olhar concreto e fisiológico, mais colado à disfunção e menos ao prazer. No entanto, também este choque é revelador do fascinante que é a sexualidade plural, com as suas componentes biológica, cultural, social, psicológica e relacional, que chama a atenção das mais diversas disciplinas científicas e enriquece os discursos que modernamente se produzem sobre ela.
Hoje em dia, têm-se elaborado definições sobre a sexualidade, como a que é apresentada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que considera a Sexualidade como “um aspeto central do ser humano ao longo da vida, incluindo sexo, identidades e expressão de género, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução” (OMS Technical consultation on sexual Health, 2006). Assim, apresenta-se a sexualidade como um elemento plural, que não é estanque, é transtemporal, transcultural e translocal e que é entendida desta forma que vai muito além do coito e da sexualidade centrada na reprodução. No entanto, não é raro que ao falarmos de sexualidade e de sexo a primeira ideia que surja seja a de coito e, portanto, uma visão ainda algo constrita e afastada de uma visão positiva e diversa da sexualidade.
A sexualidade positiva, que afirma o direito à educação sexual, ao prazer, à segurança - baseada no consentimento, à liberdade de expressão, à não agressão, à autonomia dos corpos -  baseia-se nos direitos humanos que inspiraram os direitos sexuais.
Um outro conceito é o de saúde sexual. A saúde sexual é hoje amplamente compreendida como bem-estar físico, emocional, mental, social e relacional, relacionado com a sexualidade. Assim, quando falamos de saúde sexual, falamos de aspetos específicos da saúde reprodutiva, como ter controlo sobre a fertilidade, falamos de medidas de prevenção e tratamento de Infeções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), de disfunção sexual, de prevenção de violência sexual, de prevenção da mutilação genital feminina, mas também do direito a ter experiências sexuais seguras e prazerosas, sem coerção, discriminação e violência. 
Tem existido uma vasta investigação sobre a relação existente entre a doença, nomeadamente a doença crónica, estilos de vida saudáveis e a saúde sexual, percebendo-se que estão inter-relacionados. Esta relação é favorável à ideia de que não podemos pensar num conceito global de saúde, sem pensar na saúde sexual das pessoas. Sabemos que pessoas que relatam uma maior satisfação com a sua vida sexual, têm geralmente uma melhor saúde física e mental e que algumas doenças podem contribuir para a existência de disfunção sexual, como por exemplo a diabetes, a doença cardiovascular, alterações nos músculos do pavimento pélvico, desequilíbrios hormonais, doença neurológica e doença psiquiátrica (como por exemplo depressão, ansiedade, entre outras). Claro está que ter doença não é preditor de disfunção ou de dificuldade sexual, mas uma boa saúde sexual pode ser um bom indicador do estado de saúde global de uma pessoa, ao invés de ser apenas um produto da mesma.
Existindo uma dificuldade ou uma disfunção sexual, as pessoas devem sentir-se empoderadas e no direito de procurar ajuda junto dos seus médicos, uma vez que as suas queixas devem ser atendidas e abordadas.
É importante que se entenda que ao ser permeável aos contextos sociais, culturais, psicológicos e relacionais, a abordagem das dificuldades e disfunções sexuais é realizada sob um ponto de vista livre de juízos de valor e enquadrada num contexto multidisciplinar, onde todas as diferenças serão bem-vindas.
Quanto mais falarmos de uma forma informada e científica sobre sexualidade e saúde sexual, mais estaremos perto de alcançar o que é proposto nos direitos sexuais e, dessa forma, conseguir-se-á ter um impacte positivo na qualidade de vida e no bem-estar global da população.
Apesar da evolução e do investimento que tem sido feito nos últimos anos nesta área, ainda muito está por fazer, nomeadamente ao nível da promoção da igualdade entre homens e mulheres, na prevenção de situações de violência doméstica, na afirmação do direito ao prazer sexual e também na afirmação da sexualidade como diversa e plural.
Atingir bons índices de saúde sexual deve ser uma meta de uma sociedade moderna e desenvolvida, que intervenha na proteção e cumprimento de direitos humanos. Para que tal aconteça, é fundamental que a acessibilidade a serviços de saúde que abordem a saúde mental e a saúde sexual, esteja ao alcance de todas as pessoas.

Joana Raposo Gomes
Médica Psiquiatra, Sexóloga Clínica, 
Coordenadora da consulta de Sexologia Clínica 
da ULS do Nordeste