A partir de 1588, com a derrota da “invencível armada” luso-castelhana, as marinhas da Inglaterra e da Holanda conheceram um extraordinário desenvolvimento. Para isso muito contribuiria o transporte das mercadorias comercializadas pela “gente da nação”, sempre em alerta na Península Ibérica, por causa da inquisição e trabalhando em rede com os que fugiam para outros países, nomeadamente a Holanda, já que na Inglaterra só mais tarde floresceu a nação sefardita. Em 1651, visando sobretudo a concorrência dos barcos holandeses, Cromwell decretou o Acto de Navegação, que proibia barcos estrangeiros de transportar produtos de e para Inglaterra. Então, sim, a marinha inglesa ganhou hegemonia mundial. E com o domínio dos mares, alcançou a hegemonia no comércio internacional. Portugal, que fora o país das descobertas e da navegação e tinha um imenso império colonial, viu a sua marinha destruída na “armada invencível”. E recuperada a independência de Espanha, ligou-se preferencialmente à Inglaterra, aliado tradicional desde o século XIV. Dada a sua dependência comercial e militar, Portugal aceitou mesmo ser tratado como se fora um “Protetorado Inglês”. Como o nosso trabalho é sobre a gente da “nação de Bragança” que vimos seguindo em itinerâncias constantes, vamos até ao Algarve. É que, nas últimas décadas do século XVII, registou-se um forte movimento de gente hebreia de Bragança que foi “assistir” para o Algarve. E antes de falarmos dessa gente, vamos tentar conhecer a ambiência do local naquela época, tentando saber as razões desta atração pelo Algarve. E começamos com uma pergunta: será que a disputa comercial entre holandeses e ingleses se refletia então no Algarve? Será que também ali se impunha a hegemonia marítima e comercial dos ingleses? Como lidaram os migrantes de Bragança com a situação? Não podemos dar uma resposta categórica e definitiva, pois isso exigiria a consulta de múltiplas fontes e um trabalho muito aturado, que não se compadece com uma publicação jornalística semanal. No entanto, podemos apontar indícios ou tendências, baseados fundamentalmente num corpo reduzido de processos da inquisição, já que a grande maioria dos que foram instaurados aos judaizantes brigantinos presos no Algarve pertencem à inquisição de Évora e não estão disponíveis para consulta. Socorremo-nos de alguns autores (Virgínia Rau, Alberto Iria, Borges Coelho…) que estudaram o assunto, muito especialmente a Drª Carla Vieira, cuja tese de doutoramento nos mostra cristãos-novos que embarcam em portos do Algarve com destino ao Brasil e vão circular pelo Perú, Colômbia, Panamá, Costa Rica… como foi o caso de Lopes Pero, natural de Beja, morador em Faro, embarcado em Lagos. E os apresenta também frequentando as feiras do Alentejo e mais ainda a percorrer os caminhos de Castela a negociar figos, amêndoas, sardinhas ou atum, como Estêvão Rodrigues ou Pedro Seixas. E até casos extremos de itinerância mercantil como o de Marcos Gomes, estabelecido em Tavira, que se deslocava até Lamego a comprar castanhas para ir vender em Cádis e Sevilha. Ou o sapateiro Cristóvão Rodrigues, de Portimão, que ia a Sevilha comprar coiros. Especificamente, consultamos o registo de barcos estrangeiros que chegavam a Faro, os quais eram obrigatoriamente vistoriados pelo comissário da inquisição, com a preocupação maior de ver se traziam livros a bordo, a proveniência do barco, a nacionalidade e qualidade religiosa da tripulação e o responsável/destinatário da carga. Raramente aparece também referida a natureza dos produtos transportados. Comecemos exatamente pela análise, muito ligeira, do livro de visita às naus estrangeiras entre 1662 e 1683, o único que se encontra à leitura e que mais se enquadra na época que estamos trabalhando. Desde logo, regista-se uma predominância de barcos ingleses que chegam a Faro: mais de 200, o dobro dos holandeses, o triplo dos espanhóis, muito poucos franceses e alguns genoveses. Acresce que os barcos ingleses não vinham apenas dos portos do seu país “em direitura a Faro”, mas também de outros portos. Assim, contamos uns 14 que chegaram a Faro vindos da Terra Nova. E contamos muitos que vinham de Tânger e até de Cádis, em Castela. Veja-se um exemplo: - Aos 21 de Outubro de 1662, chegou a este porto de Faro o navio chamado Mercador de S. Lucar, que veio de Inglaterra a Tânger e dali a este porto, remetido a Henrique Janson, cujo capitão veio de Londres em direitura a Tânger, com 20 companheiros, todos ingleses. Mais estranho ainda: são barcos ingleses (e também holandeses) que aparecem transportando trigo dos Açores para Faro e assegurando transportes de colónias portuguesas, como Cabo Verde e Azamor e mesmo de Lisboa, Porto ou Aveiro para Faro. Um dos casos referidos: - Aos 19 de Outubro de 1672, chegou o navio Samuel, vindo do Porto, de Portugal, remetido a Samuel Hismail, mercador inglês desta cidade de Faro, sendo a tripulação inglesa. A generalidade dos barcos vinha destinada a mercadores de Faro, bem individualizados, os quais dominariam as importações para o Algarve. Também aqui é esmagadora a vantagem dos 7 mercadores ingleses estabelecidos no Algarve que receberam o carregamento de 296 barcos, contra 42 que vieram destinados a 3 mercadores holandeses. Samuel Hismail, entre 1672 e 1683, recebeu 68 barcos, (média de 1 barco em cada 2 meses), terá sido o mais ativo mercador inglês de Faro, seguindo-se Henrique Janson, que recebeu 45 barcos, entre Setembro de 1662 e fevereiro de 1673 e Guilherme Croque com 41 barcos, entre setembro de 1662 e Setembro de 1669. Refira-se que em Faro, foram descarregados 6 barcos vindos de Inglaterra dirigidos a Tomas Smith, mercador inglês estabelecido em Tavira. E esta e outras referências semelhantes, mostram que, por aqueles anos, o porto de Faro dominava absolutamente sobre todos os portos algarvios. Barcos estrangeiros dirigidos a mercadores holandeses, contamos 42, sendo que 40 traziam carga para Samuel Joaquim e seu sócio estabelecidos em Faro. Dirigidos a Maximiliano (?), mercador holandês, sedeado em Portimão, chegaram 2 navios, remetidos de Amesterdão. Mercadores portugueses responsáveis por mercadorias importadas, contamos 12, um dos quais a trabalhar em Portimão e que receberam 59 barcos estrangeiros. Muitos aparecem furtivamente, descarregando apenas um ou dois navios e apenas 4 marcam presença de algum relevo e que foram: António de Castro, a quem vieram dirigidos 6 barcos, entre 1662 e 1666. Vieram 3 de Amesterdão, 1 dos Açores, mas com bandeira holandesa e 2 de Cádis, um deles com a tripulação constituída pelo capitão do navio, “8 companheiros, franceses, católicos e 3 marinheiros”. António de Castro, natural de Lagos, morador em Faro, seria preso pela inquisição de Lisboa em 17.7.1669. Anos depois, em 1680, aparece-nos um Manuel de Castro, a receber 2 barcos e Gaspar Dias de Castro recebendo 6 navios. Pelo menos, este último seria filho de António de Castro, natural e morador em Faro. Também ele foi preso pela inquisição de Évora, em Dezembro de 1669. À exceção do primeiro, remetido de Hamburgo, com tripulação hamburguesa, todos os outros barcos vieram de Amesterdão. Quanto a Gaspar Dias de Castro, sabemos que, por 1689, trazia arrematada a distribuição do tabaco no Algarve, a crer na informação do médico António de Mesquita, que, na audiência de 15.5.1703, acrescentou: - Haverá 13 ou 14 anos, que se ausentou para as Índias de Castela onde, ouviu dizer, que se fizera padre da Companhia de Jesus. Durante 7 anos, entre 1662 e 1669, João Ribeiro, alferes e depois capitão, foi o mercador português assistente em Faro que mais barcos estrangeiros recebeu (16, no total). O primeiro registo que aparece no livro citado, refere-se a um navio inglês chegado de Tânger. O segundo carregamento, em Dezembro de 1662, é assim descrito: - Chegou ao porto de Faro o navio chamado S. Guilherme, de Amesterdão em direitura a este porto, remetido ao alferes João Ribeiro, morador em Faro, cujo capitão com 7 companheiros e um rapaz todos holandeses. Na verdade, a origem das mercadorias recebidas por este mercador hebreu eram bem variadas, porventura escondendo uma rede familiar de negócios da diáspora sefardita. Vejam: de Amesterdão – 8 barcos, Nantes - 4, La Rochelle -1, Roterdão – 1, Hamburgo – 1 e Tânger – 1. Mais ativo se mostrou Rafael de Sá que, em 5 anos de atividade, recebeu 17 navios. Mas, sobre este homem da “nação de Bragança” que em Faro se tornou homem de negócio, falaremos em próximo texto. Dissemos atrás que raras vezes se falava dos produtos transportados. Quanto a isso podemos dizer que o produto mais referido, importado do Sul de Espanha e Norte de África, era o esparto. Quanto aos produtos carregados em Faro, referimos já os figos, as amêndoas, o trigo… Faltará referir o atum e um barco que veio a Faro carregar cal para Tânger.