“Judeus” em Bragança: anos de 1700: Quadros Sociais- Prender judeus parece caça de coelhos

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Ser Tabelião do público, judicial e notas, era, em tempos de outrora, emprego de muita importância e responsabilidade, concedido por mercê d´el-Rei. Ainda de maior responsabilidade, importância e proveito era o cargo de Correio. Pois, na cidade de Bragança, pelos anos de 1700, Francisco Correia acumulava estes dois empregos. E ainda um terceiro, menos remunerado e de menor visibilidade, mas para o qual se exigia muita confiança e seriedade – o de escrivão do Fisco. Competia-lhe fazer o registo de todos os bens, móveis e imóveis sequestrados às pessoas, nos respetivos termos, que eram mandadas prender pela inquisição. Para além desses empregos, Francisco Correia tinha uma fazenda avaliada em 4 mil cruzados. Homem de elevado estatuto social, por todos considerado cristão-velho, quis ascender ao reduzido círculo dos Familiares da inquisição que, na área do concelho de Bragança, o decreto regimental publicado em 1693,  limitava a 8 titulares. Não o atingiu, porque não conseguiu provar que Maria da Rocha, sua avó materna, era cristã-velha. Sabia-se apenas que era filha de uma mulher que tinha vindo da Galiza para Soeira, Bragança, dizendo alguns que esta viera como criada de servir e o patrão, Francisco da Rocha, lhe arranjara a tal filha, que casou com Francisco Vilela, do Porto, fixando o casal a morada em Soeira.  A acrescentar suspeitas, apareceram testemunhas a dizer que ele era parente de Maria Teixeira,  que morava na Rua Direita de Bragança e foi presa pela inquisição, bem como o seu filho, José Correia. Vejamos agora como devia proceder-se ao sequestro dos bens, socorrendo-nos do Professor António Borges Coelho que escreve: - Ao recado por escrito dos inquisidores, anunciando que se vai proceder à prisão de fulano com sequestro de bens, o juiz e escrivão do Fisco comparecerão “com muita diligência” chamando à sua mão “todas as chaves das tais casas, e das arcas e escritórios” para que se não possa sonegar nem esconder cousa alguma. Estará presente, além do escrivão e do juiz do Fisco, um outro escrivão ou tabelião, para dar fé do inventário.  Resulta, assim, que a presença de Francisco Correia era indispensável quando em Bragança se prendiam os “hereges” com sequestro de bens, para fazer o registo de tudo, incluindo os que o juiz do Fisco mandava vender em “pública almoeda”. A propósito destes leilões de bens sequestrados (nomeadamente os bens perecíveis, como o pão, o vinho e outros géneros alimentícios), deve dizer-se que, em 5.2.1622, o inquisidor-geral Fernão Martins Mascarenhas concedeu autorização aos próprios funcionários e agentes da inquisição para neles licitar. Está-se mesmo a ver… como os homens do santo ofício e os seus amigos devoravam os bens dos presos. Por outro lado, os que eram presos, ou desconfiavam que o poderiam ser, procuravam maneira de os esconder, ou, em conluio com parentes e amigos, dizer que determinados bens eram destes e não deles e combinar dívidas e créditos, que lhe devolveriam mais tarde, ou entregariam a seus familiares. Todos os meios que a imaginação permite utilizariam para salvar o máximo de seus bens. Por seu turno, as prisões eram efetuadas com todo o segredo, muitas vezes ao domingo, à saída da missa, de modo a evitar que os réus fugissem ou oferecessem resistência. Sim, que às vezes resistiam, como aconteceu com João Oliveira, de Carção, que lutou e esfaqueou com uma navalha o padre que o ia prender, armado com uma catana, quando aquele vinha por um caminho com uma carga de folha de amoreira.  Ainda sobre prisões e sequestro de bens, será oportuno transcrever das “Notícias Recônditas” o seguinte excerto: - Na mesma hora que o prendem, lhe poem na rua sua mulher e filhos. Atravessam-lhe as portas. Fazem inventário de todos os bens. E como se a mulher não tivera parte neles, fica despojada de tudo, sem nenhum remédio. E quando são marido e mulher ambos presos, ficam os filhos em tal desamparo que, em muitas ocasiões, meninos e meninas de 3 e 4 anos se escondem nos alpendres das igrejas e nos fornos (…) pedindo pelas portas. Situemo-nos agora em Bragança, no ano de 1713, ano que começou com mais uma vaga de prisões, logo no mês de Janeiro. Com efeito, foram então presas umas duas dezenas de pessoas, acusadas de judaísmo, entre elas, Miguel da Silva, um homem “riquíssimo de mais de 15 mil cruzados”. Não sabemos quanto rendeu a “caça” (o termo é de Francisco Correia) para o Fisco e que bens terão sido leiloados em “pública almoeda”. Muito poucos e bem pouco renderiam, a crer nas queixas daquele escrivão do Fisco. A razão é que, em Bragança, naquela época, porque não havia segredo, antes se anunciava as prisões, com “4 badaladas”. Depois, as prisões eram feitas pelo comandante militar, que era de fora e não conhecia as pessoas e ia com os soldados pelas ruas, perguntando por fulano e sicrano. Efetuadas as prisões, cada soldado procurava abotoar-se ao que podia, se bem que, entretanto, na generalidade dos casos, as casas fossem “limpas” de bens móveis pelo próprio e seus familiares e amigos, como já se disse. De tudo isto, melhor que nós, deu conta aos inquisidores de Coimbra o escrivão Francisco Correia, em carta de 3.7.1713. É um documento interessantíssimo, revelador do ambiente que rodeava as prisões, em nome da inquisição. Vejam: - Muitas vezes tenho dobrado papel para fazer a V. Senhorias esta queixa e nunca me resolvi a fazê-la, com os receios de que fosse menos aceite. A causa é que, como sou escrivão das execuções do fisco e juntamente pretender, há muitos anos, para ser familiar, entendi sempre ser menos querido de V. Senhorias. Mas como vejo as prisões serem feitas cada vez pior, com tão má forma e disposição que os bens dos presos os furtam ou lhe ficam outra vez em casa, por isso me decidi fazer este aviso, levado do zelo do santo ofício e dos bens do fisco. (…) E peço a V. Senhorias segredo, que isto bate com um pároco e com um general de armas, que me podem deter desgraças no sertão da terra; porém pode haver outros meios e caminhos para tudo se segurar. Este comissário, assim que vem ordens desse santo tribunal para prender, as entrega ao general das armas para que as dê execução, e é certo que cada um deles quer acertar, porém como este fidalgo não conhece a gente da terra, se fia em cabos, maiores e menores, de maneira que para prenderem Fulano, vão 3 ou 4 e vão a diversas ruas, perguntando por Fulano. E para este efeito, para avisar-se para as prisões, dão 4 badaladas em um sino, aviso total para o judaísmo se levantar da cama e se pôr em fugida. Este é o desacerto para as prisões e outros muitos que, por não ser molesto, não relato. Só digo que, no dia de qualquer prisão, parece caça de coelhos. E por esta causa, os soldados furtam os bens, e outras muitas pessoas e talvez os mesmos de casa, como foi a prisão feita a António Mendes, sapateiro, que foi preso em 6 de Junho passado, e 4 horas depois de preso, se deu parte á justiça, tempo que, quando eu entrei em casa, não havia outra coisa nela senão 1370 (réis) de inventário, tendo ele feito 100 000 3 dias antes, em coiros bezerros e sapataria. Um homem com tanto trato e cabedal, se não lhe achou mais, e desta sorte se têm sumido os bens dos outros presos, (…) e a que teve maior descaminho foi o de Miguel da Silva, que sendo riquíssimo, de mais de 15 mil cruzados, se lhe não sequestraram 100 mil réis. E a causa foi que lhe deram assalto em casa para o prender, e como não o achassem, o foram prender 5 léguas desta cidade, e entretanto os de casa a limparam. E ultimamente nem um preso tem ido sem haver roubo na casa em seus bens, ou seja feito pelos da casa ou pelos guardas militares que se lhe põem, de que se tem tirado devassas, mas com isso o fisco perde o seu e as prisões vão como vão. Esta mesma presa que leva o portador desta, romperam a parede da casa para lhe furtar vinte e tantas formas de fazer sapatos que se acharam em outra casa, já vendidas. O mesmo que foi nesta e em todas as mais. E por isso, seus sequestros não chegam para os alimentos e fica o santo ofício leso e o fisco grandemente prejudicado. V. Senhoria porá remédio nisto como melhor lhe parecer que, se não fora em mim os muitos anos que tenho de idade, havia de ser eu o portador deste aviso e não havia de ser por papel, a respeito do segredo… 

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães