Somos assim

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É a expressão da inevitabilidade do povo português. Regista-se no léxico da mesma forma que parece estar no ADN; traduz a catástrofe e a incapacidade de fazer melhor; arrasta consigo a autocomiseração diluída no grupo. Deste modo, evita-se o confronto e a reflexão, ao mesmo tempo que se adia a mudança e a capacidade para fazer melhor. O “somos assim”, em tempos, fortalecia os laços e mantinha a coesão do grupo; perpetuava uma forma de estar e a incapacidade de fazer diferente. Quando há décadas ouvia esta expressão associada a uma outra: “pobrezinhos mas honrados”, que no seu todo dava algo como: “somos assim: pobrezinhos mas honrados!” – Cheguei a pensar que a culpa de ser pobre era da honra. Mais tarde dei por mim a culpar a ditadura e até a igreja, sobretudo os pregadores que do alto dos púlpitos vociferavam a defesa da honra e exaltavam as virtudes da pobreza. Depois, aprendi uma oração que vem do princípio dos tempos e que numa determinada parte diz: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes / aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias” – confesso que me agradou de sobremaneira, embora ficasse com pena dos ricos. Mas na verdade somos mesmo assim e exemplos não faltam. Uma semana após a comunicação social ter feito eco do trágico incêndio que destruiu dois canis em Santo Tirso, que levou à demissão de um diretor-geral, a inflamados discursos das forças partidárias e ao agendamento de debates de urgência, para não falar nos ânimos exaltados das massas que acorreram a insultar e a denegrir, eu, que até tenho um lema de vida: “cuido da natureza, para que a natureza cuide de nós” fui, como habitualmente, comprar ração para uma meia dúzia de coelhos que, sem estatuto de animais de companhia, têm todos os cuidados que merecem, inclusivamente, vacinas em dia. Quem me atendeu, aproveitou a familiaridade que se estabelece no comércio tradicional para dar o recado: “-Tem de dizer aos seus coelhos para se irem habituando a outra ração…”. Quis saber porquê. Simples: a empresa que a produz foi vendida a uma multinacional e vai deixar de fabricar esta ração no nosso país. Tão simples quanto isto. Somos assim: sublimamos os afectos, multiplicamos carícias, mas ninguém se insurge quando o nosso tecido empresarial vai ter a mãos estrangeiras, mesmo que deixem de produzir rações de qualidade para os animais que dizemos defender. De igual forma, somos capazes de manifestar a nossa indignação quando alguém tomba vítima de crime racista, mas até partilhamos imagens da deputada Katar Moreira durante a campanha e quando, veementemente, fez a sua defesa perante o partido pelo qual foi eleita, simplesmente porque se achou que era cómico. E face às ameaças da intitulada extrema-direita que tem acontecido nos últimos dias, quem demonstrou já a sua indignação afirmando-a na primeira pessoa? Não admira, pois quem tenha estado atento terá notado que nem a primeira figura do estado foi capaz de dizer: “Eu condeno”, por diplomacia ou outras razões, usou a primeira pessoa, a do plural, e apelou à contenção. Somos assim: juntamos a palha, deixamos acender o rastilho, mas enquanto o monte não arder, deixa-se andar. O mesmo se aplica ao que aconteceu no lar de Reguengos. Enquanto não morreram dezoito utentes, não houve a preocupação de averiguar se as regras da DGS estavam a ser cumpridas ou se haveria condições para cumprir. Quando se criaram estas respostas sociais, ninguém podia adivinhar que se iriam viver estes tempos, mas agora que se sabe e se conhecem as consequências, em vez de resolver no terreno, mandam-se preencher checklists, enquanto os utentes estão há meio ano confinados e sem expectativas de que o quadro se reverta. Somos assim: incapazes de ver o todo, focamo-nos na parte menor. E de tal modo somos assim, que o povo soube, na sua sabedoria, condensar esta forma de estar em dois provérbios: “Depois de casa roubada, trancas à porta” e “enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.” Folguemos pois neste mês de agosto, porque não sabemos o que setembro nos reserva.

Raúl Gomes