Deus vos dê bons dias, boa gente. Espero que estejam a atravessar este momento com optimismo e sentido de responsabilidade. Todos sabem já o que têm a fazer e todos já perceberam a proporção deste problema, cuja resolução depende do contributo activo de cada cidadão. Nunca é demais consciencializar as pessoas para este fim. Introdução feita, mudemos um pouco de assunto. Desanuviemos, dialoguemos. Para provar que também se podem encetar vivos diálogos por entre o papel das páginas de jornal, vou pegar num tema do amigo Luís Ferreira, que há tempos escrevia aqui sobre a pequena “navalhita prateada” que seu pai trazia no bolso e da qual o Luís, querendo seguir o mesmo hábito, sempre dela se esquecia, mesmo quando a ocasião mandava cortar um cacho de presunto ou algum cibo de pão. Creio que a navalha era parte da indentidade socio-económica trasmontana como objecto multifuncional, imprescindível para quem passava os dias (e às vezes, no Verão, as noites) no termo a tratar dos gados e das terras. Quão desprevenido estaria um homem nesses afazeres se não tivesse uma faca para cortar um baraço que fosse, para merendar ou para qualquer outro improviso que a vida do campo requeresse. E, claro, para defesa ou segurança, pelo menos psicológica, em relação a algum perigo que pudesse surgir nessas andanças. Uma boa navalha era uma fiel amiga do homem. Nos comensais momentos de convívio dir-se-ia com orgulho “esta não falha”, “a minha até corta papel” ou “já a trago há mais de 20 anos”. E das navalhas, vamos às profissões que puntuavam os dias preenchidos das aldeias do Nordeste. O carpinteiro que fazia as mesas e os bancos, o taberneiro que tinha sempre um copo de vinho à mão e onde o ambiente por vezes tomaria proporções de cortar à faca quando os jogos de cartas subiam de tom. Andava também pelas aldeias muita gente de passagem, o peleiro, a comprar as peles dos animais, os carvoeiros, a vender carvão, o azeiteiro, que trocava azeite por outros bens. Muitas vezes era mais trocar do que vender. Ouvi dizer que a minha avó costumava trocal mel por azeite. Outros cirandavam pelas aldeias a pedir a quem muito não teria para dar. Pedir lenha, no Inverno, por exemplo, para conseguir dar calor aos filhos. Sinto que Portugal tem uma certa aversão ou embaraço em se debruçar sobre estes temas, sobre o quotidiano desses tempos. Talvez tenham sido anos e décadas duras, mas assim nos construímos há tão pouco tempo. No nosso pensar de agora fomos sempre uns pós-Europa, todos aprumadinhos com wifi em todo o lado, já nascemos todos no hospital e usámos todos fraldas descartáveis. São questões de identidade que eu creio que ainda iremos desempoeirar e procurar mais adiante. Mas eu queria chegar ao ferreiro. O ferreiro, por trabalhar o ferro e produzir, entre muitos outros utensílios, a navalha, seria das profissões mais importantes de uma aldeia. O meu pai contou-me que antes de ir para a tropa o ferreiro de Avelanoso, que se chamava tio Isaque, lhe ofereceu uma faca de qualidade ímpar, com a qual se manteve inseparável de Santa Margarida aos planaltos dos Macondes. O movimento migratóio ou diáspora das navalhas trasmontanas também daria um tópico de afiado interessante. Falta referir as pedras de afiar. Havia quem as tivesse à porta de casa junto ao banco de pedra, em alguns sítios ainda hoje lá estão. Muitas vezes eram motivo para se dar os bons dias, parava-se, afiava-se a navalha, trocavam-se dois dedos de conversa com quem estivesse à porta de casa a descansar ou a debulhar alguma vagem. Algumas destas pedras de xisto tinham melhor qualidade que outras para afiar as navalhas segundo os entendidos do assunto. Enfim, todo um tempo, uma história e uma organização social que se pode aguçar em torno deste pequeno objecto. E não falei de Palaçoulo, incontornável, uma aldeia que se fez e que se faz do fabrico de icónicas facas. Voltando ao amigo Luís e às suas palavras certeiras sobre as perniciosas intenções que continuam a servir-se deste objecto para pautar os nossos dias mais infames. Más intenções que não são de agora, claro está, a “faca e o alguidar” teimam em deixar de se apresentar como solução irracional para alguns seres humanos resolverem os seus problemas. Este lado negro ou “Bairro Negro”, recorda- -me também o Fado e os seus primórdios, já que as navalhas eram igualmente leais companheiras dos bolsos e das noites dos fadistas, nome dado aos rufias ou marginais lisboetas daquele tempo. Aliás, o fado, o tango, o blues e toda a arte que um dia nasceu marginal. O Museu do Fado tem uma vitrine onde se podem apreciar alguns desses toscos espécimes confiscados pelos quadrilheiros. A navalha, parte da iconografia do fado trasmontano, embora em desuso para os fins apropriados, tal como muitas outras coisas que fazem parte dessa iconografia. Ironicamente, a espaços, continua ainda a ser usada para fins mais próximos dos do fado lisboeta de há dois séculos. Enfim, o que faz falta é acalmar a malta e não nos esquecermos da navalha na hora H, ou seja, na hora de atacar a fogaça, o queijo, a chouriça, a tabafeia, a posta de vitela... Um forte abraço e protegei-vos bem!
* Leitor de Português na Universidade de Sun Yat-sen Cantão Guangdong – China