«A praça escurece de um excesso de luz / e ele hesita entre os simulacros da sobra.»
(Fernando de Castro Branco, 2005:13)
«O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos.»
Sophia, Arte Poética II
Fernando de Castro Branco nasceu em Duas Igrejas, Miranda do Douro, em 1959. É doutorado pela Universidade do Porto em Literaturas e Culturas Românicas.
É poeta, ensaísta e professor. A sua obra é vasta e reparte-se por vários géneros, sendo um pio sacerdote de Calíope. Em poesia, publicou os seguintes títulos: Alquimia das Constelações, Lisboa, Roma Editora, 2005; O Nome dos Mortos, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Biografia das Sombras, Vila Nova de Famalicão, Atelier de Produção Cultural, 2006; Estrelas Mínimas, Amarante, Editora Labirinto, 2007; Plantas Hidropónicas, Cosmorama Edições, Maia, 2007; Marcas de Verões Partidos, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Arte do Espaço, in A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; A Carvão, Poesia Reunida, Cosmorama Edições, Maia, 2009; Assinatura Irreconhecível, Cosmorama Edições, Maia, 2010; A Caminho de Avoriaz, Cosmorama Edições, Maia, 2011; Carta a Mim Mesmo, Cosmorama Edições, Maia, 2016; Desde Portugal, Cosmorama Edições, Maia, 2016.
Saliente-se a dúzia de obras poéticas que o autor já deu à estampa, apesar de ter começado a publicar tardiamente aos (46 anos), em 2005. Desde esse lapso temporal, tem publicado a um ritmo avassalador, acentuando a profusão que mana do filão inesgotável que nutre a sua poesia. A sua obra poética está, também, representada em diversas antologias de âmbito nacional e internacional e espalhada por outras publicações dispersas.
O poeta cultiva, ainda, a ensaística, sendo especialista em Albano Martins. Sobre este autor, publicou o ensaio Poética do Sensível em Albano Martins, Lisboa, Roma Editora, 2004. O rol de revistas em que o ensaísta escreve é considerável, por esse motivo, permito-me, apenas, referir: Colóquio/Letras, Revista da Universidade de Turim, Teia Literária e O Escritor.
Este ensaio tem o desiderato de apresentar ao leitor, sem preocupações demasiado herméticas, uma ‘iluminação’ desta obra assinalável a vários títulos, pois o escopo deste texto é despertar nos leitores o gosto pela fruição da poética deste escritor trasmontano, porque «O acto crítico, precisamente para poder seu uma iluminação, como afirma T. S. Eliot, não pode ser, todavia, uma abstração e não pode, diremos nós, ser uma reiteração do que outros, de outro modo, disseram já» (Cortez, 2019:15). Para a consecução deste propósito, focar-me-ei no livro de estreia do autor Alquimia das Constelações (2005), onde já são visíveis as linhas temáticas que enformarão a sua poética.
A obra com que o poeta Mirandês se apresentou ao público abre com dois paratextos relevantes para a sua descodificação. A dedicatória à mãe, à esposa e aos filhos, primeiros inspiradores e destinatários dos seus poemas, reforça os laços de sangue e a progénie familiar; as três epigrafes realçam as genealogias literárias, traves mestras da formação poética de Fernando de Castro Branco. A de Ruy Belo remete o leitor para o pendor narrativo e para o poema de fôlego que vai encontrar, realçando também a importância da escrita para ambos os poetas, «Escrever-te é a maneira de te ter presente». A de Álvaro de Campos acentua a matriz moderna da lírica do autor de Desde Portugal, na senda do heterónimo pessoano. A de Stéphane Mallarmé liga-se à musicalidade e à espontaneidade da composição poética.
Alquimia das Constelações é uma obra estruturada em cinco andamentos. O primeiro que dá título à obra é composto por 38 poemas; no segundo «Lugares do Tempo» o leitor encontra 18 poemas sobre locais da geografia poética, emotiva e sentimental, do escritor, que se espraiam desde Duas Igrejas, sua terra natal, passam por Miranda, Bragança, Vila Real, Porto, Lisboa, desaguando em Portugal, no derradeiro poema deste andamento «À procura de um país» (2005:75). A memória com o seu poder de revigorar, em termos literários, o passado, está patente nos 7 poemas de «Voz Reminiscente». A metapoesia e a reflexão sobre o labor poético opera-se nas 10 composições do denotativo título «As Máquinas Poéticas». Nos últimos 8 poemas, subordinados ao antitético título «O Lado Azul da Tempestade», a voz poética vai-se progressivamente enfraquecendo até se tornar um simples murmúrio inaudível ao ouvido humano.
Omitindo as inferências que o polissémico título da obra possibilita já escalpelizadas por Albano Martins no texto citado de seguida. O autor domina com mestria o arsenal retórico, comparações com elementos naturais: «como troncos devorados lentamente / numa fogueira de inverno» (p.29) e encavalgamentos, na senda de Eugénio de Andrade: «Deixas as palavras florescer na penumbra / dos segredos e o silêncio não ocupa todo / o vazio desse lugar inerme. Na voz com / que te calas latejam os gestos nus, como / aves poisando no céu o voo integral» (p.20). A poética de Castro Branco é uma poética metafórica, figura inerente ao processo poético, como argutamente notou Albano Martins: «José Fernando de Castro Branco é, além de um cultor de formas e ritmos variados, um exímio criador de metáforas. Metáforas são, pois, as sus “constelações”, metáfora é o seu processo de transformação alquímica do real em ouro poético» (2008:39).
As vozes da tradição lírica e literária são convocadas por Castro Branco para os seus poemas, estabelecendo-se um diálogo enriquecedor. Numa plêiade que vem dos gregos (Zenão e Epicuro), passa pelos latinos (Horácio e Ovídio), pela tradição bíblica, demora-se no renascimento (Camões) e no romantismo (Garrett), desaguando na modernidade e contemporaneidade (Baudelaire, Cesário, Pessanha, Pessoa, Drummond de Andrade, Ana Luísa Amaral…), pois a vida, na sémita de Horácio, eterniza-se na escrita e na leitura que o mundo venha a fazer das palavras escritas daqueles escritores que emudecem, mas não morrem.
Esta poesia escora-se na memória, uma vez que os poemas viajam pelo tempo passado recuperando os materiais concretos – as palavras – para resistir ao império da morte: «Lembro-me das manhãs, / ainda o frio morava nas pedras / e já nós ameaçávamos os pássaros / nos bosques / antes que o sol os acordasse / de luz» (p.80). Todo o poeta é um «pastor do ser», na formulação de Heidegger, sendo, por natureza, nostálgico de um tempo e uma unidade passadas e perdidas. Noutro poema do mesmo andamento lemos: «Lembro-me de uma primavera em que / o vento partiu os ramos tenros das roseiras, / e os pássaros se agitavam perdidos / no frio, debaixo do peso das nuvens, / sem saber o que fazer perante / o alarme interno da nidificação» (p.84). Aliás, a memória como pedra angular na poesia de Castro Branco foi, também, identificada por Albano Martins: «é na memória, que não na reminiscência, pontuada de transcendência e platonismo, que descobre a via de regresso ao passado. Com ele parte ao encontro dos seus paraísos perdidos, na tentativa de recuperação de lugares, imagens, sensações, perfumes, sabores, paisagens…» (2008:42).
O pendor reflexivo atravessa toda a obra, embora atinja o clímax no quarto andamento «As Máquinas Poéticas», associado às figurações do poeta. No poema «Esculpindo Manhãs» (30 versos para Albano Martins) o poeta identificando-se com o interlocutor, acaba por assumir-se como um vigia, um perseguidor e um artífice da palavra: «Vestes a inquietude do dia, e procuras / sem descanso um punhado de palavras / lúcidas, como quem procura uma gruta / para esconder o Sol. // Vigias o abismo discreto das palavras, os perfumes do som, a pele imponderável / do sentido, recolhes uma a uma as letras / com que cercas os ângulos, as pontas, / e com elas o canto das coisas treme / na madrugada, dentro dos olhos das aves. // E persegues a justa simetria das cordas, / o ponto exacto onde se cruzam / o silêncio e o discurso, a regra e a nublosa, / como se no vento das harpas e das cítaras» (p.23). Este belíssimo poema sobre o labor poético termina com duas singulares metáforas: «Agora o poema é uma pedra de sol, / um cometa de água e de sangue (…) // Procuras a lucidez das palavras / até à vertigem do poema» (p.24). Assim, ao poeta, esse procurador da lucidez das palavras, cabe a missão de fazer da poesia um passe de mágica de que todos estamos necessitados nestes tempos de indigência. Apresento, apenas, mais um exemplo do aturado labor poético do autor: «Por muito tempo desembrulhei a tarde / para encontrar o fio de um poema. Iluminei as árvores com a sombra / já distante do outono, instiguei ao voo / os pássaros poisados nas macieiras, / e antecipei por meses a primavera / para que rebentassem flores no inverno / e andorinhas montassem os seus ninhos / no bico do vento em pleno gelo» (p.90). Nestes versos está patente a figuração do poeta, um ser empenhado com o seu tempo, lutando com as palavras, para construir com elas realidades ‘surreais’ que possam acalentar a vida humana, pois o texto poético tenta, de forma contínua, perscrutar os sons do mundo, procurando fixar a realidade difusa do presente, único tempo que existe e a única certeza. O poeta é resiliente: «escreve-se o poema / contra as palavras, / e apesar das palavras» (p.38). Constata-se, assim, que escrever para Fernando de Castro Branco é sobreviver, ou reviver. Esta escrita, próxima dum realismo, à Cesário, escorada por uma linguagem que distende os versos, aproximando-os da narrativa, faz-se com precisão e mestria, onde se destila a dor Transmontana e Portuguesa, na senda de Alexandre O’Neil.
Na segunda estrofe da mesma composição, o poeta questiona o próprio poema, a poesia e todas as poéticas, com grande dose de ironia: «não vi chegar o poema que esperava, / mas estes vinte versos, / que embora nunca frequentem / os ambientes selectos das antologias, / me demonstrem claramente a / imponderabilidade do bucolismo / na construção de uma poética» (p.90).
Por último, uma breve referência ao tom disfórico e elegíaco da poesia do autor, consubstanciado, como já referi, num rumor triste, num silêncio dorido, sombrio, e, por vezes, pessimista, presente em versos como estes: «De vez em quando adormeces / em pleno dia / e ninguém chama por ti / e te diz, é tarde / e continuas quieto / ao sol» (p.43). Noutro poema onde há um diálogo intertextual com o Frei Luís de Sousa, que coadjuva a descodificação do poema, o desânimo do poeta vai mais longe: «Anoitece, repito, / e ninguém grita, ou se arremessa / da falésia, / nem drama nem tragédia / na comédia dos dias, / na farsa dentro dos ossos» (p.48). A passagem para o plural cristaliza o abandono a que o Nordeste Transmontano tem sido votado ao longo das décadas: «Dir-nos-ão que os rios são artérias agudas / no corpo do mar, (…) Dir-nos-ão as lentas palavras / na areia da nortada, (…) Dir-nos-ão que envelhecemos / esperando que passem os invernos / sucessivos, (…) Dir-nos-ão que os mortos exibem os símbolos / e as metáforas no silêncio com / que fustigam as raízes dos arbustos, / e as palavras que calam são a cor / escura com que vivem / outra vez. // E nós diremos que por aqui / enlouquecemos vorazmente / entre os gritos do sol / e o silêncio de Deus» (p.52).
Como se viu, as motivações desta escrita são várias e o seu tanger tenta conciliar a linguagem com a forma de expressar o real, pois o poeta sempre encarou a sua poesia como reflexão, questionação e jamais simples repetição da realidade vivida.
Poderá, em sinopse, colocar-se a eterna questão de Ruy Belo, inserta no poema “ácidos e óxidos”, «Que fica dos teus passos dados e perdidos?». A resposta encontra-se nos interstícios de um labor verbal simultaneamente alusivo e denotativo. O que fica, na poética de Fernando de Castro Branco, é a força da linguagem como lugar do desconcerto pessoal, vivido com prazer e dor.
Bibliografia:
BRANCO, Fernando de Castro. Alquimia das Constelações. Lisboa: Roma Editora, 2005.
CORTEZ, António Carlos. Voltar a Ler Alguma Crítica Reunida. Lisboa: Gradiva, 2019.
MARTINS, Albano. Circunlóquios II. Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2008.