Tomé Lopes era um cristão-novo de Vinhais, tratante de profissão. Foi casar a Rebordelo, com Ângela Cardoso, também ela nascida em Vinhais. Em Rebordelo estabeleceram morada e ali, pelo ano de 1652, nasceu uma filha que batizaram com o nome de Guiomar Lopes. Poucos anos depois, a família rumou a Castela.
Ficando viúvo, Tomé Lopes, casou segunda vez, com Filipa Rodrigues e deste casamento nasceu Diogo Lopes Marques, pelo ano de 1665, na povoação de Méndez, termo de Oviedo, região das Astúrias.
Cedo ficaria órfão, dizendo ele mesmo que nunca “alcançou (conheceu) o pai”, criando-se Diogo com os tios maternos, Manuel e José Rodrigues. Este último, sapateiro, casado com Maria de Melha, morador no lugar de Santibañes de Vidriales, bispado de Astorga o terá iniciado na lei de Moisés, explicando-lhe as cerimónias que devia fazer, jejuns, etc. e ensinando-lhe várias orações, como esta que devia rezar de manhã:
Bendita la lux del dia
E el Senhor que nos la imbia
Para nos dar pax e alegria
E saber e entender
Para depues de morirmos
Bolbermos a aparecer
Neste mundo de claridade.(1)
De acordo com o seu testemunho, este ensino aconteceria por 1682, quando ele contava uns 20 anos e trabalharia com os tios, em Astorga. Quatro anos depois, foi a Benavente visitar sua irmã Guiomar Lopes e seu cunhado João Dias Pereira que ali moravam. Com eles, além dos filhos, vivia também um sobrinho de João Dias Pereira, chamado Luís Lopes Penha, que então contava uns 14 anos. Vejam como, anos mais tarde, em 1702, ele descreveu a visita de Diogo:
— Depois de estar um mês em Benavente, veio a casa do dito seu tio Diogo Lopes Marques, hoje de 37 anos, então solteiro e residente em Astorga, estanqueiro do tabaco, meio irmão de Guiomar Lopes, que veio a ver sua irmã, que não via há muitos anos. E na tarde do dia seguinte que chegou à dita casa o dito Diogo Lopes, estando detrás da tenda dela, ele declarante e Guiomar Lopes, os três sós, a dita Guiomar Lopes perguntou se ele Diogo Lopes Marques era cego, ou estava cego. A isto respondeu que não estava cego, porque seu tio Manuel Rodrigues, de Astorga, mercador, e sua mulher Josefa Ramires o haviam ensinado nas coisas da lei de Moisés.(2)
Demorou-se na visita à irmã pouco mais de uma semana, posto o que regressou a Astorga. Algum tempo depois, dirigiu-se a Trás-os-Montes, a Lebução, para casar com Clara Nunes, filha de Álvaro Mendes, mercador e neta do Dr. Manuel Mendes, importante médico natural de Lebução, residente em Chaves.(3)
Em simultâneo, ajustou-se o casamento de Manuel Dias da Mesquita, irmão de Clara, com Isabel Dias Pereira, filha de Guiomar Lopes e João Dias Pereira. Seria pelo ano de 1688.
Regressaram a Espanha os dois casais, indo ter a Benavente a casa de Guiomar e João. A filha e o genro ficaram morando em sua casa e para Diogo e Clara tinham reservado uma casa à parte.
Por essa altura marcava o calendário o dia do Kipur, que foi celebrado em casa de Diogo e Clara, “por ser uma casa sem negócio” enquanto na casa do cunhado havia “muitos criados, que pelo dito tempo tinha”. A celebração incluiu dois dias de jejum à maneira judaica, estando todo o dia sem comer e ceando coisas de “viernes”, lavando as mãos antes de comer e enxaguando a boca com água no fim. Participaram nas celebrações os 9 membros da alargada família. Luís Lopes Penha, sobrinho de João Dias e que fazia parte da família ficou durante o dia a tomar conta do “Peso” do tabaco, que o tio trazia arrendada, indo a casa de Diogo apenas à hora de cear. Os outros passaram ali o dia em rezas e cerimónias judaicas.
Os jovens casais detiveram-se em Benavente por meio ano, regressando a Lebução, certamente com planos combinados em rede familiar de negócios, que giravam sobretudo em volta do tabaco e da seda, num constante intercâmbio transfronteiriço. Em Lebução viveram alguns anos, regressando a Benavente.
Por volta de 1698 Diogo Lopes empreendeu uma viagem de maior delicadeza a Placência, em apoio a seus cunhados António Correia e Pedro Álvares a quem o corregedor terá feito um “descaminho” de quantidade de prata. Por essa altura, Clara Nunes adoeceu e pouco depois faleceu. No dia seguinte, Diogo e Pedro a enterraram na igreja de S. Nicolas em Benavente.
Passados 7 dias, Diogo Lopes, Manuel Dias, Pedro Álvares e Luís Lopes, estando sós na dita casa, fizeram um jejum por alma da defunta, estando sem comer nem beber durante 24 horas ceando “viernes” e rezando a oração da “Folganza compuesta…”
Toda a família se empregava na venda de tabaco, arrendando estancos pela região de Salamanca e Zamora. A concorrência era forte e, por 1700, depois de lhe terem “tirado e pujado” o estanco de Benavente, Diogo Lopes regressou a Portugal.
Aliás, o mesmo aconteceu com seu cunhado João Dias Pereira que o precedeu no regresso, indo fixar-se em Torres Novas, onde conseguiu arrendar o estanco do tabaco. E também aos outros membros do clã, nomeadamente a Manuel Dias de Mesquita que regressou acompanhado de sua mulher Isabel Dias, com Diogo Marques, passando por Rebordelo, antes de se dirigirem a Lisboa. Com eles, viria ainda Leonor Henriques, irmã de Manuel, também cunhada de Diogo, solteira, de 30 anos.
Ali, Diogo Lopes estabeleceu morada na Rua das Arcas e com ele ficariam morando a dita Leonor Henriques, sua cunhada, com a qual casaria em segundas núpcias e “um sobrinho do mesmo chamado Manuel que Diogo Lopes tinha em sua casa, para lhe vender pelas ruas”.
Em Castela ficou Luís Lopes Penha, que foi preso pela inquisição de Valhadolid ao início do mês de fevereiro de 1702. Obviamente que Diogo Marques e os mais que com Luís se tinham declarado ficaram apreensivos, pois a inquisição espanhola depressa mandaria para a de Portugal cópia das confissões de Luís, o que efetivamente aconteceu.
Antecipando-se à prisão que pensaria certa, Diogo Lopes Marques procurou fugir para Inglaterra, embarcando-se em uma nau daquele país. Veja-se como Graça Henriques, moça de seus 12 anos, que também pretendia fugir, se referiu ao caso, perante os inquisidores:
— Depois de estarem embarcados na dita nau, passados 20 ou 22 dias, foram para a mesma nau, mas para outro camarote, um Diogo Lopes, duas mulheres que não sabe o nome, uma rapariga e uma criança de que não sabe o nome, que seria de 1 ano e meio, se acomodava em outro camarote, em outro sobrado debaixo da mesma nau, as quais não conhecia mas eram portuguesas, e estavam embarcadas na mesma nau, para irem para os portos de Inglaterra, e desembarcaram na praia do Cais do Tabaco dia de Natal que foi o dia em que os ingleses os trouxeram à dita praia vindo todos embarcados na lancha dos mesmos ingleses.(4)
Graça e os parentes foram presos naquele mesmo dia de natal e logo denunciaram também Diogo Lopes Marques que foi preso em 3 de janeiro seguinte. Veja-se a denúncia feita por Diogo Rodrigues Dias, do Sabugal, “tutor” da Graça:
— Disse que se achou no mesmo navio com Diogo Lopes Marques, castelhano, (…) e a mulher do mesmo, que lhe parece se chama Leonor, e com uma irmã desta e cunhada do dito Diogo Lopes, e estando todos os quatro no mesmo navio, por ocasião de os mesmos não quererem comer uma galinha assada com manteiga, sem dizer a razão, porém ele confitente ficou entendendo que os mesmos a não queriam comer por serem observantes da lei de Moisés, por ele ter ouvido em outras ocasiões, que era proibido na mesma lei comer lacticínios com carne, de cuja prática ele confitente se aproveitou, não mandando, dali em diante, assar carne com manteiga.(5)
Outros passageiros embarcados, em fuga para Inglaterra eram da família dos Medina, nomeadamente Manuel Lopes Pinheiro e Leonor Henriques, sua sobrinha, filha de Isabel Henriques Laguna e Simão Rodrigues Nunes.(6)
Resta dizer que Diogo Lopes Marques saiu condenado em cárcere e hábito no auto-da-fé de 9.9.1703, a que assistiu D. Catarina, que foi rainha de Inglaterra. E depois de penitenciado, acabou mesmo por fugir para Inglaterra, onde aderiu abertamente ao judaísmo.
Notas:
1 - ANTT, inq. Lisboa, pº 4551, tif 96.
2 - Idem, tif 45.
3 - Inq. Coimbra, pº 6018, de Violante Nunes.
4 - Inq. Lisboa, pº 532. Graça era filha de Domingos Lopes Ferreira, contratador, e Francisca Lopes, ausentes já em Inglaterra.
5 - Idem, pº 4551, tif 21.
6 - ANDRADE, António Júlio; GUIMARÃES, Maria Fernanda, Judeus em Trás-os-
-Montes A Rua da Costanilha, p. 191, Âncora Editora, 2015. VIEIRA, Carla, Nation Between Empires.