Francisco Fernandes da Guerra nasceu em Freixo de Espada à Cinta, em 4 de agosto de 1713, sendo filho de João Fernandes Morgado e Maria Fernandes Tratária. Fez os estudos elementares na terra natal, com o licenciado Manuel Marques Sá Cardoso por mestre de gramática. Seguiu os estudos superiores na universidade de Coimbra, formando-se em medicina. Regressou a Freixo, obtendo o cargo de médico do partido, que lhe rendia 60 mil réis/ano.
Médico do partido e pessoa bem conceituada, muito naturalmente, o Dr. Francisco procurava ascender na escala social do concelho. Decidiu, para isso, candidatar-se à nomeação de familiar do santo ofício. Nesse sentido, em setembro de 1747 apresentou um requerimento ao conselho geral da inquisição.
Seguindo as normas, foi ordenado ao tribunal de Coimbra que promovesse a busca de informações “secretas” sobre a capacidade do candidato e a sua limpeza de sangue. Algo ao arrepio das normas, tais informações foram solicitadas ao “notário” Manuel Zuarte Coelho que, no caso, assumiu o papel de “comissário”.
A informação foi positiva e o processo continuou, com as investigações judiciais a ser conduzidas pelo também notário padre Francisco Geraldes da Guerra,(1) morador em Urros, investido no papel de comissário e levando como secretário o padre João Gabriel, cura de Ligares.
A inquirição das testemunhas teve lugar na capela do Senhor da Fonte Seca, na vila de Freixo de Espada à Cinta e todas elas, em número de 12,(2) certificaram que o habilitando era homem abonado de bens, competente e de boa vida e costumes, sem a mais leve suspeita de impureza de sangue.
Foi um processo simples e normal, sendo-lhe passada carta de familiar do santo ofício em 20.6.1749.(3) A essa altura contava Manuel Fernandes da Guerra 35 anos e mantinha-se solteiro, médico do partido. Mas logo acertou casamento com Maria Esteves Gemelga, 8 anos mais nova que ele, natural da freguesia de Poiares, filha de Lucas Martins e Maria Pires Morena.
Dada a sua qualidade de familiar do santo ofício, o casamento não poderia realizar-se sem o prévio certificado de limpeza de sangue da noiva, passado pelo conselho geral da inquisição.
O processo teve início com o pedido de informações confidenciais enviado de Coimbra ao notário Manuel Zuzarte Coelho em 30.10.1749 e o pagamento adiantado de 6 mil réis. Hospedado em Poiares, em casa de Pedro Esteves, de Frechas, por 2 dias e meio, o “comissário” Zuzarte inquiriu uma dúzia de pessoas e, no fim, em 15.2.1750, escreveu no seu relatório:
— A dita habilitanda padecia de fama de judia, por parte de seu avô paterno João Pires Moreno, a qual fama não me souberam declarar se era falsa ou verdadeira.(4)
Chegada a Lisboa a diligência feita em Poiares e o relatório do “comissário”, coube ao deputado do conselho geral, Francisco Mendes Trigoso analisar o processo e decidiu:
— Tornem estas diligências à inquisição de Coimbra, para que os inquisidores mandem perguntar judicialmente (…) se a fama de judia é antiga, se moderna, qual a origem dela, se teve princípio em pessoas mal afectas ou maldizentes e que conceito forma da verdade desta fama…(5)
Com esta determinação, o deputado Fragoso enviou também uma nova lista de pessoas de Poiares que deviam ser chamadas a testemunhar. Certamente que os nomes destas testemunhas foram sugeridos pelo requerente, que também pagou as custas da nova diligência.
Voltou o “comissário” Zuzarte a Poiares e as testemunhas ouvidas alinharam pelo mesmo diapasão dizendo que realmente correu fama de que a família de Maria Esteves Gemelga era judia e que a fama vinha do tempo de sua avó Maria Esteves Belita, que tinha uma irmã chamada Catarina Fernandes Belita. No entanto a fama era falsa e nasceu de um episódio bem caricato, que vamos contar, resumindo o que disseram as testemunhas.
Ao tempo em que a Catarina era moça solteira, um clérigo de Poiares quis meter-se de amores com ela e levá-la para a cama. Ela contou aos irmãos, que arranjaram um corno de um boi (alguns diziam carneiro) e lho deram, para que o atirasse ao padre, em público.
Aconteceu por essa altura realizar-se uma festa e procissão pelas ruas da aldeia. O pároco seguia na procissão, debaixo do pálio, com o Santíssimo Sacramento, e o tal clérigo ia à frente do pálio, com o turíbulo na mão, incensando os ares. Chegando a procissão à rua do Barreiro, onde a Belita morava, esta saiu à porta e atirou com o chifre ao padre, acertando-lhe na cabeça.
Obviamente que foi um escândalo enorme e logo muita gente comentou que só uma judia era capaz de fazer uma cena daquelas; que só uma judia poderia interromper uma procissão. Se era grave ofender um clérigo, muito mais era fazê-lo no decurso de uma procissão. A ofensa maior era a nosso Senhor Cristo, que seguia na procissão levado pelo pároco na hóstia do cálice.
Na sequência do escândalo e alcunhada de judia, Catarina não teve outro remédio senão abandonar a aldeia e ir morar para Castela. No entanto, acrescentaram as testemunhas, ela e toda a família eram cristãos-velhos inteiros e em prova diziam que dessa família se ordenaram dois padres: Mateus Borges e António Caldeira de Melo.
Ficou satisfeito o deputado Fragoso com esta segunda diligência, considerando que a fama de judia era falsa e teve princípio “na acção temerária que referem de uma moça desta geração, que, ofendida de algumas palavras atrevidas que lhe dissera um clérigo, lhe atirou ou deu com um corno na cabeça, indo ele em uma procissão incensando com o turíbulo ao Santíssimo Sacramento, do que resultou dizer-se que quem tal fazia devia ser judia”.
Nestes termos, foi concedida autorização ao Dr. Francisco Fernandes da Guerra, familiar do santo ofício, para casar com Maria Esteves Gemelga, em julho de 1750. Resta dizer que ela era já viúva de Pedro Fernandes(6) e dele tinha uma filha, nascida em 1745.
Notas:
1 - ANTT/TSO-CG, Habilitações, Francisco, mç 63, doc. 1206. Francisco Geraldes da Guerra, natural de Almendra, era cura encomendado na igreja de S. Bartolomeu de Urros, Torre de Moncorvo. O facto de serem nomeados funcionários da inquisição de menor categoria, como eram os notários, para proceder a estas diligências, significará que então havia muitos processos de habilitação a decorrer e não havia comissários suficientes para o fazer.
2 - Por curiosidade, diremos que José Domingues Mocanca, de 52 anos, foi uma das testemunhas, o qual fez carreira militar, em terras da América de onde regressou a Freixo em 1737.
3 - ANTT/TSO/CG, Habilitações, Francisco, mç. 70, doc. 1284.
4 - Idem, tif, 137.
5 - Idem, tif, 197.
6 - Pedro Fernandes era filho de Pedro Fernandes Periscalho e Catarina Fernandes Belita, a moça que, supostamente, atirou o galho ao padre.