Este fim-de-semana fui a um concerto do Sebastião Antunes & Quadrilha. Além da ‘Cantiga da Burra’, que toda a gente sabe de cor, e de mais um punhado de músicas bem conhecidas, uma delas, que desconhecia, deixou-me particularmente pensativa. No refrão diz assim: ‘Ninguém fala do Homem do Saco/Ninguém espreita por baixo do colchão/Já ninguém acredita na Coca nem no Bicho Papão’. Ora, em primeira análise, é verdade. Os miúdos de hoje são muito menos crédulos. Com dois anos sabem mexer em tudo o que é aparelho electrónico, com três já sabem números e letras e começaram a falar inglês. Não resta muito tempo para ter
medo do Bicho Papão, e, acredito, aos quatro até já conseguem articular uma resposta válida para nos convencer, a nós, adultos, de que todos esses seres não passam de mentiras, de rábulas. O Sebastião foi dizendo, na introdução da ‘Conto do Bicho Papão’, que este que dá nome à canção anda triste porque já ninguém acredita nele. E, instintivamente, imaginei uma figura enorme, grotesca e verde (sim, verde parece-me a cor de quem come tudo o que encontra), sentada no canto de uma gruta ou de um armário particularmente grande, a chorar virada para a parede porque, de repente, os meninos já não tremem quando, entre uma colher de sopa e outra, os pais chamam
convictos o Bicho Papão para vir tomar conta daquele menino mal-comportado que não gosta de vegetais. Na letra surge uma hipotética solução para todo este drama, que traz o Bicho Papão em poltronas de psicólogos: ‘Ai seu pudesse inventar um jogo electrónico/Voltava a ser falado, voltava a assustar/Imaginem lá qual não era a sensação/ De uma consola com o jogo do regresso do Papão’. Não acredito que isso pudesse resolver o drama vivido pelos vilões de antigamente. Provavelmente, o Papão seria convertido numa espécie de tamagotchi dos tempos modernos, sem pingo de piedade por todos os gritos lançados, outrora, por inocentes crianças. A não ser, claro, que fosse de uso
parental. E aí os progenitores poderiam dizer, na hora da sopa: ‘Ai não comes? Vou já abrir a app do Papão e dizer que há um menino nesta morada que está a precisar de um valente susto para começar a gostar de brócolos’. E o Papão ia anotando os pedidos, bem como o motivo da queixa, e ia visitando as famílias, uma a uma. Lembro-me de aprender, algures na universidade, que as crianças têm medos inatos – de serem comidas, abandonadas e do escuro. E por isso todos os contos para aquela faixa etária se baseiam nesta informação. Assim assegura-se a fórmula perfeita para toda e qualquer estória. Eu não acreditava no Bicho
Papão. Fazia-me sentido que ele comesse crianças, porque são mais tenras, mas sempre achei que devia ser grande. E uma coisa grande vê-se bem. Por isso, como nunca o vi, pensava que eram uma moda lá de outros países longínquos. Já com o Homem do Saco era pior. É que na minha aldeia passava um senhor, que vivia de modo indigente, nunca cheguei a perceber porquê. Era o David, gostava de se meter com os miúdos por entre piscadelas de olho coniventes dos pais e andava com uma saca de serapilheira às costas. Ora bem, podia não caber lá uma criança...inteira pelo menos, achava eu. E, sabem que mais? Afinal a sopa não era assim tão ruim.
Tânia Rei