Francisco Brandão nasceu em Moncorvo por 1600, sendo filho de Jorge Fernandes e Inês Rodrigues. Pequeno ainda, foi levado para Málaga, Espanha. Ali se criou, em casa de Ana Brandoa, sua tia materna, casada com Pedro Pinto, tio de sua mãe.
Em 1626, Francisco e os tios viveriam já em Madrid, conforme ele próprio contou na inquisição em 1652:
— Haverá 26 anos, se achou em Madrid, em casa de Pedro Pinto, casado com Ana Brandoa, irmã da mãe dele confitente, e com Duarte Pinto, irmão do sobredito, casado com Leonor Brandoa, mercador e Francisco Vaz Pinto, irmão dos sobreditos, casado com Isabel Vaz, todos naturais de Moncorvo e moradores em Madrid.(1)
Pouco depois, Francisco Brandão regressou à terra natal, para casar e estabelecer sua casa de morada e comercial. Situava-se esta na praça municipal, entre a Rua do Cano e a Rua dos Mercadores. Confrontava com Henrique Rodrigues, ferrador(2) e este com Luís Correia de Paiva, esta com entrada pela Rua dos Mercadores. As três casas davam, pelas traseiras, para um largo em que cada um teria um pequeno quintal, onde cultivariam alguns legumes, ou utilizavam para secar e espadar o linho, como era o caso de Francisco. E todas tinham varandas e janelas para o quintal.(3) As casas do Brandão e do ferrador comunicavam entre si, conforme testemunho da mulher daquele:
— Haverá 12 anos em sua casa e por um buraco de sua casa, que estava junto de outro de Henrique Rodrigues, ferrador, chegou ao dito buraco Susana Mendes, mulher do mesmo e doutrinou-a.(4)
Para além de rendeiro do real de água, Francisco Brandão era tendeiro e a loja funcionava no r/chão de sua casa. Nela assistia mais regularmente o filho David, então de 14 anos. Na loja vendiam-se sobretudo panos e linhas, mas também produtos tão díspares como resmas de pólvora, papel, sal, açúcar e muito em especial, sabão, já que Francisco tomou do “estanqueiro e contratador do sabão nesta comarca” o exclusivo da venda do produto na área do concelho. Por isso e principalmente nos dias de feira, à sua loja acorria também muita gente das aldeias do termo, de modo que “nem tinha tempo para comer”- dizia a sua mulher.
O acesso ao piso superior era feito por um lanço de escadas a meio da loja. Muita gente subia estas escadas porque, em cima, funcionava uma “casa de jogo”. E havia também uma divisão onde Maria Rodrigues trabalhava, no ofício de doceira, “quase de contínuo, sem dela sair”. E esta é a primeira doceira que encontramos na história de Torre de Moncorvo.
Entre outros doces que fabricava e vendia contavam-se os massapães, feitos de amêndoas pisadas, ovos, farinha e açúcar. E deles comprava frequentemente o advogado João Góis. Um dia, porém, a doceira não quis aceitar os dois tostões com que a ama do advogado queria pagar os doces, porque eram de chumbo. Pediu que lhe mandasse pagar com outro dinheiro, que não aceitava “aquelas falsidades”.
Em outra ocasião, o mesmo advogado mandou o sogro comprar uma resma de papel, mas antes queria ver a qualidade. A vendeira, “pela pouca confiança que dele tinha, mandou 4 ou 5 folhas para amostra”. Foi com a amostra e “tornou muito agastado, dizendo que seu genro não era homem de quem se desconfiasse, e com cólera lançou as folhas de papel da mão, muito inchado, fazendo mostras de que a ameaçava”.
Embora não sendo homem de nobreza, nem de fortuna, Francisco Gouveia Pinto conseguiu ser distinguido com o colar de familiar do santo ofício, em 1640,(5) o que lhe dava uma grande importância e distinção social, para além de isenção de impostos e proventos monetários nomeadamente quando o encarregavam de efetuar prisões e conduzir os presos à cadeia de Coimbra.
Explica-se, assim, que Gouveia Pinto andasse em permanente vigia “à caça” de “judeus” e, em junho de 1646, tenha escrito uma carta para Coimbra, denunciando, entre outros, Francisco Brandão e sua mulher. Escrevia que, nas sextas-feiras, da parte de tarde, deixavam de trabalhar e se sentavam nas escadas da loja sem fazer nada, o mesmo acontecendo aos sábados. Também mudavam de fato e “Maria Rodrigues se conserta no rosto melhor que nos outros dias”.
Acrescentava que, na sexta-feira à noite em sua “casa de jogo” se juntavam ”em sinagoga” o ferrador Henrique Rodrigues, o médico Francisco Nunes Ramos, o tendeiro Rodrigo Nunes, seu vizinho e Francisco da Cunha, da Covilhã, estanqueiro do sabão.
Estas coisas, viu ele e de outras ouviu falar a pessoas que depois foram chamadas a depor, em devassa conduzida pelo comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos.(6) Uma delas foi o “distribuidor e contador desta vila”, que trabalhava com o advogado Gois que confirmou:
— Maria Rodrigues, durante a semana não vem abaixo à tenda, por estar em cima a fazer doces, que é o seu trato principal, e nos sábados vem assistir na tenda, mais concertada de corpo e rosto e mais alegre do que o costume.
Mais estranho foi o depoimento de uma Ana Ferreira. Disse que, 10 anos atrás, foi comprar linhas à loja de Francisco Brandão. E subiu onde estava a doceira e ficaram à conversa. E chegando outras pessoas e chamando-a, teve de descer. Ficou só a outra que, olhando para baixo de uma arca, viu um chapéu com qualquer coisa dentro. “E ela testemunha tirou o chapéu e achou dentro dele uma tourinha de metal”.
Francisco Rodrigues e a mulher acabaram presos, juntamente com vários outros cristãos-novos de Torre de Moncorvo. Verdadeiramente dramática foi a partida para Coimbra. Primeiro saiu a coluna dos homens. Depois a das mulheres. Joana de Gouveia, mulher nobre em cuja casa foi a ré “guardada” os dias que precederam a organização da coluna, condoída da prisioneira, pediu que a levassem pela Rua das Quatro Esquinas para que os filhos a não vissem assim algemada. Os carcereiros, porém, fizeram-na passar pela praça, para que os filhos a vissem e acrescentar a ignomínia. Entre os mais de 50 curiosos que acompanharam a “procissão” pelas ruas da vila, um se pavoneava particularmente: o familiar Francisco Gouveia Pinto que, vendo a mãe e os filhos em lágrimas, ironizava:
— Valham os diabos, bravazona! – ao que ela respondeu:
— Não quer que chore pelos meus meninos? Pois vou presa por falsários e traidores.
Contando a cena aos inquisidores, Maria Rodrigues, concluía:
— Entende ela ré que o dito Francisco Gouveia disse aquelas palavras como que raivoso, por lhe não cometerem a ele a prisão, nem vir com ela ré nem com os mais presos, a ganhar dinheiro.
Ao cabo da vila, avistou a coluna dos homens, que iam à frente. E pôs-se a gritar:
— Meu Brandão, pai dos meus filhos!
Fizeram parar o macho em que ela seguia, para a outra coluna se distanciar e o marido não ouvir as suas “palavras amorosas” – como disse uma testemunha. De contrário, Gouveia Pinto continuava rindo-se da desgraça da doceira que, entre lágrimas, dizia:
— Traidor, falsário, quanto me tens comido!
Não vamos falar dos quase 4 anos que passaram nas cadeias da inquisição de Coimbra. Diremos que, depois de ganhar a liberdade, Francisco e a mulher se foram viver para o Porto, cidade onde sua filha mais velha casara com Heitor Rodrigues Chaves “escrivão da correição” e mercador.(7)
Em 1655, o casal vivia em Lisboa, ao Lagar do Sebo, de onde se mudaram para a cidade da Guarda onde Francisco instalou uma “casa de Jogo”. Finalmente, por 1661, foram-se a viver para Madrid.
O filho mais velho, David Brandão, estava então casado com uma prima e vivia em Castelo Branco, servindo de “administrador das terças do reino”. Dois outros filhos, Diogo e Luís, estavam casados em Mogadouro, na família de Baltasar Lopes Oliveira, familiar e agente das empresas Mogadouro em Trás-os-Montes. Ambos foram presos, em 1662.(8) Inês Brandoa, a filha mais nova, essa casou em Moreira, Trancoso, e ali vivia, com 2 filhos pequenos.