Pero Henriques Julião nasceu em Torre de Moncorvo cerca de 1565. Seu pai, Julião Henriques, era médico e, por 1570, vivia em Castela, na localidade de Vilvestre, sendo acusado perante o inquisidor Jerónimo de Sousa de ter participado numa celebração judaica em Freixo de Espada à Cinta.(1) A mãe, nascida em Vila Flor, chamou-se Branca Coutinho e vinha de uma família principal da burguesia local hebreia, sendo neta materna de Manuel Coutinho, certamente batizado em pé, que foi criado de Álvaro Pires de Távora. Mas isso não impediu que a filha (Brites Coutinho) e o genro (Leonel Fernandes),(2) pais de Branca Coutinho, avós de Pedro Henriques Julião, fossem presos pela inquisição de Coimbra em 1568, acabando ela queimada na fogueira do auto da fé de Lisboa de 20.8.1570.
Não menos importante era a família de Francisca Vaz, a mulher com quem casou Pedro Henriques Julião, neta materna de Pedro Henriques, o Cavaleiro que acompanhou el-rei nas campanhas pelo norte de África.
O casal fixou residência em Torre de Moncorvo, na Rua dos Sapateiros, em uma casa de sobrado avaliada em 80 mil réis, que confrontava com a do boticário Álvaro Nunes.(3) Pedro Julião pertencia à classe aristocrática dos rendeiros e, por isso, andava constantemente fora de casa na cobrança das rendas. E viajava com regularidade, sobretudo para Braga, onde ia arrematar as rendas arcebispais.
Para além disso, ele era “depositário geral das obras públicas deste reino”, cargo de nomeação régia, sob proposta conjunta do corregedor e do provedor da comarca e cujas funções poderíamos, numa comparação grosseira comparar nos dias de hoje às de “banqueiro” e, em simultâneo, “diretor regional de finanças”. O cargo exigia uma grande capacidade financeira,(4) a qual justifica também que Pedro Julião fosse nomeado repartidor e cobrador, na área da comarca, da finta lançada entre os cristãos-novos portugueses, como “serviço a el-rei Filipe”, para obtenção do perdão.
Para além de rendeiro, Pero Henriques, era um verdadeiro empresário agrícola, explorando um olival à Fonte do Concelho, outro ao Vimieiro, outro ao Prado e um na freguesia de Horta da Vilariça. Porém, o maior de todos era o das Porreiras que valia mais de 500 mil réis. Era ainda proprietário da Quinta do Montesinho, que começava ao fundo da Rua dos Sapateiros. Tinha um pedaço de vinha à Pipa e um sumagral no Vimieiro. O sumagre recolhia-o em dois palheiros e o moía, para o que dispunha de uma atafona, cuja localização não conseguimos apurar.
Em 1618, a inquisição lançou uma grande operação sobre a classe mercantil portuense, prendendo, nomeadamente, alguns que eram originários de Vila Flor e Torre de Moncorvo,(5) que, por sua vez denunciaram Pero Julião e outros, originando o seguinte despacho dos inquisidores de Coimbra:
— Mandamos a João da Costa, familiar da inquisição, morador nesta cidade, que vades à vila de T. Moncorvo e Vila Flor e ali vos encarregareis das pessoas que vos derem presas…(6)
Dois dos prisioneiros levados de Torre de Moncorvo foram Pero Henriques Julião e Manuel Rodrigues Isidro,(7) possivelmente os dois homens mais endinheirados da terra e as duas maiores referências daquela geração de gente da nação de Torre de Moncorvo.
Olhando o processo de Julião, diremos que, em sua defesa, indicou testemunhas da mais alta nobreza e do clero, a começar por Diogo de Sampaio, cavaleiro fidalgo do hábito de Cristo, pelo arcediago da sé de Braga, Pedro da Fonseca e pelo reitor da igreja matriz de Torre de Moncorvo, padre João Lopes. Todos as testemunhas ouvidas o consideravam cristão exemplar, irmão da Misericórdia, membro das confrarias de Santo António e da Senhora do Rosário. E referiram que, quando se tratou de fazer o retábulo do altar da Senhora do Rosário, na igreja matriz, Pero Henriques Julião, se responsabilizou pelo pagamento de um painel do mesmo retábulo.(8)
De referir também que as duas denúncias registadas no processo, uma de Tomé Vaz, negociante do Porto e outra de Pedro de Matos, morador em Lagoa, Macedo de Cavaleiros, foram feitas depois de Pedro Julião estar preso em Coimbra, significando isto que os inquisidores de Coimbra mostravam então pouco respeito pelo regimento da inquisição.
Concluiu-se o processo dois anos depois, com o réu a abjurar de leve suspeito no auto da fé de 29.11.1621, regressando a casa onde o esperava sua mulher, 3 filhos e 3 filhas, então todos solteiros. Apesar de tudo o que a inquisição lhe comeu, a sua casa continuaria a crescer, acrescentada nomeadamente com 3 moinhos na ribeira de Santa Marinha, no termo da aldeia de Felgueiras, conforme conta do processo de sua mulher, geridos pelo moleiro, seu criado, Francisco Brás. Pedro H. Julião viria a falecer por 1634, contando 69 anos de idade e deixando casadas as 3 filhas(9) e os filhos solteiros. Um deles faleceu logo de seguida, outro andava pelas Índias de Castela e o terceiro assistindo em Vigo, de onde abalaria mais tarde, “não sabe para onde”, conforme testemunho de sua mãe.
Francisca Vaz, sua mulher, viria a ser também presa pela inquisição em Julho de 1641. Requerendo a prisão de Francisca Vaz, suas filhas Filipa e Branca e seu genro Manuel Henriques Pereira, o promotor justificava:
— Lembro a vossas mercês que a Torre é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição que fez muito fruto entrando também por testemunhos de cerimónias em Quintela (de Lampaças) e em Sambade.(10)
O processo de Francisca foi iniciado em Torre de Moncorvo pelo vigário-geral do arcebispo de Braga e comissário da inquisição, o Dr. Paulo Castelino de Freitas que viria a ser inquisidor do tribunal de Goa. A vida desta mulher no cárcere foi verdadeiramente dramática, sendo-lhe dados “três tratos corridos” que a deixaram à beira da morte. Com efeito, nem sequer compareceu no auto da fé de 12.7.1644, em que seria lida a sua sentença. “Estava para morrer, sem sentidos”, conforme ficou escrito no processo.
Notas:
1 - Inq. Coimbra, livro 662, visitação do inquisidor Jerónimo de Sousa em Torre de Moncorvo: — Bartolomeu Fernandes (…) disse que haverá 11 anos, morando ele com Álvaro Vaz, cristão-novo, mercador nesta vila e agora está casado com uma irmã de Julião Henriques (…) e indo uma vez a Castela com panos, passaram a barca de Vilvestre de noite e se vieram agasalhar a Freixo de Espada à Cinta, em casa de uma viúva, Francisca Rodrigues (…) estalajadeira e ali veio ter com o dito seu amo Julião Henriques, físico, que então morava em Vilvestre e agora mora em Vila Flor (…) depois de se deitar, fez que dormia e o dito seu amo, com os mais cristãos-novos, a estalajadeira e duas filhas suas mulheres se juntaram junto do fogo e mandaram pôr uma mesa com um alambel por cima, e puseram duas velas em dois castiçais, acesas na dita mesa e entre estas velas puseram um livro de quarto que poderia ter duas mãos de papel e o abriram e cada um deles lia pelo dito livro e o primeiro que começou a ler foi Julião Henriques…
2 - Inq. Lisboa, pº 2182, de Leonel Fernandes; pº 807, de Brites Coutinho.
3 - Tinha também casas que trazia arrendadas, uma delas no Prado de Cima, junto “à cruz de Bragança”, outra defronte da casa de Diogo Sampaio, outra que partia com os herdeiros de Pedro da Mesquita, além de duas que serviam de armazéns, ao fundo da Rua dos Sapateiros…
4 - O depositário que o antecedeu foi Domingos Henriques, filho de Pero H. Cavaleiro.
5 - O nome de Feliciana Henriques, natural de T. Moncorvo, casada com o ourives Álvaro Rodrigues Preto, integrava a primeira lista de pessoas a prender na cidade do Porto. Tal como o de Tomé Vaz, advogado, que tinha “algum parentesco” com Pedro Julião e o primeiro a denunciá-lo.
6 - Inq. Coimbra, pº 5814, de Pedro Henriques Julião.
7 - Inq. Coimbra, pº 448. ANDRADE e GUIMARÃES, Os Isidros a Epopeia de uma Família de Cristãos-Novos de Torre de Moncorvo, Lema d´Origem, Porto, 2012.
8 - O altar da Senhora do Rosário foi posteriormente substituído. Dele resta um painel da Senhora do Rosário que foi metido no retábulo que hoje ornamenta a sacristia da igreja matriz, segundo informação do falecido sacristão, Sr. Júlio Dias.
9 - Catarina Henriques, nascida por 1600, casou em S. João da Pesqueira, com Manuel Francisco da Mesquita, que faleceu por 1656, morando o casal na cidade do Porto e ela, ficando viúva, foi presa pela inquisição, terminando queimada na fogueira do auto da fé de 3.5.1660; Filipa Henriques, casou em Vila Flor, com António Henriques Alvim, rendeiro e sendo já viúva em 1641, foi presa pela inquisição, saindo penitenciada em cárcere e hábito; Branca Coutinho casou em Torre de Moncorvo com Manuel Henriques Pereira, também rendeiro e, como as irmãs, também ela foi prisioneira da inquisição.
10 - Inq. Lisboa, pº 5022, de Francisca Vaz.