Em tempos de liberdade, com o 25 de Abril a ecoar em muitos dos portugueses, sobretudo naqueles que ainda sofreram a amargura dos grilhões da ditadura salazarista, é possível falar de Lutero sem azedume e lembrá-lo, sem receios, em páginas que, alguns mais dados à leitura, aproveitarão para recordar ou conhecê-lo.
Num mundo em mudança, onde as guerras não dão tréguas, parece existir um apaziguamento em relação a personalidades que foram tratadas com alguma acrimónia. A literatura tem este dom: traz à tona figuras da sociedade que mudaram u rumo da história pelas melhores e piores razões. É o livro a eternizar-se e a reclamar a sua importância. Bendito Gutemberg que mudou a face da terra e permitiu ao curioso penetrar em séculos de vida. E desbravar da existência, é possível chegar a Lutero que em Novembro abriu os olhos, em Eisleben, na Alemanha.
De pai, mineiro, origem humilde, dedicado a Deus e à Igreja Católica, é-lhe ministrada uma educação severa, de acordo com os costumes da época. Feitos os estudos primário e secundário, ingressou em 1501 na Universidade de Erfurt, cuja cidade era governada pelo arcebispo de Mogúncia. Uma vez, bacharel em Artes, segue-se uma experiência no curso de Direito, que abandonará. Dedicado a Deus, ingressa na Ordem dos Agostinhos em Erfurt, a 17 de Julho de 1505, sendo ordenado sacerdote em 1507. Sempre em busca do conhecimento, retoma os estudos, cursando Filosofia e Teologia na Universidade de Erfurt, sendo nomeado leitor universitário na mesma Universidade em 1508.
Depois de uma visita a Roma em 1510, que o terá desgostado, bem como a outras personalidades, não poupa críticas à autoridade da Igreja. Por seu turno, Erasmo, no Elogio da Loucura, não se furta a censuras, excluindo do céu o Papa Júlio II. Savonarola pagará com a vida a sua temeridade, numa época em que a vingança, aliada à crueldade não se afastam dos hábitos eclesiásticos.
Lutero, crítico e avesso aos hábitos da Igreja, instala-se em Wittenberg, apoiado pelo príncipe eleitor Frederico, o Sábio, assumindo a cátedra de Teologia, ao mesmo tempo que estuda com vista ao doutoramento, simultaneamente pregando na igreja de Wittenberg, onde a palavra luterana dardejava a figura do Papa de Roma e os seus sequazes.
Se é verdade que os hábitos praticados pela Igreja suscitavam da parte de Lutero profundas críticas, a pregação das indulgências, convidando à sua aquisição com o objectivo de aliviar o sofrimento no Purgatório dos familiares defuntos, provocou em Lutero uma maior indignação. É certo que se tratava de uma prática popular, cuja receita se destinava à construção da Basílica de São Pedro, em Roma.
O perdão dos pecados nunca poderia ser alcançado por intermédio de alguém, só através de uma vida dedicada à penitência, é possível ganhar o perdão de Deus. A Igreja através do Papa, não possuía o poder nem os meios para perdoar os pecados. A fé verdadeira só era possível pela prática e obediência aos princípios da Sagrada Escritura. A autêntica salvação residia no texto bíblico orientador de toda a prática do cristão. Embora já houvesse reformadores anteriores a Lutero, como John Wycliffe que criticou o fausto do Papa e a acumulação das posses da Igreja, Lutero traduz a Bíblia, instrumento indispensável de orientação para uma vida de penitência, de união e de participação na salvação divina. Deus é o centro de todo o argumento luterano, e é com Deus que todo o crente tem que se harmonizar. Nenhum sacerdote, nenhum sacramento, nenhum santo podem fazer chegar o crente até Deus. Tudo fica a cargo de cada um individualmente.
Segundo Lutero, acreditar nas indulgências dava ao homem um falso sentido de segurança que não podia conciliar-se com a salvação evangélica em Cristo. Por outro lado, a sua indignidade revela-se, face às pessoas ligadas ao processo do comércio das indulgências, como por exemplo, o príncipe e clérigo Alberto, da Casa dos Hohenzollern que apenas com 23 anos, já era senhor de duas dioceses, a de Halberstadt e a de Madeburgo.
Perante esta situação indecorosa que era o comércio das indulgências, Lutero resolveu afixar 95 teses contra, na porta da capela do Castelo de Wittenberg, em 31 de Outubro de 1517, data considerada como a do aniversário da Reforma. Posteriormente, surgiram dúvidas quanto à divulgação das teses, aventando alguns historiadores, que as mesmas terão sido remetidas às autoridades eclesiásticas que promoveram a sua ampla divulgação.
Seria fastidioso enunciar as 95 teses escritas, no original em latim, traduzidas para português por Dinis de Almeida, sendo elas no seu conjunto uma manifestação global, em 95 alíneas de refutação às indulgências mandadas pregar pelo Papa Leão X, em 1514. Achamos, contudo, pertinente a transcrição da n.º 36, elucidativa da posição de Lutero:
“qualquer cristão, verdadeiramente arrependido, tem completa remissão, tanto da pena como da culpa; ela é-lhe devida mesmo sem cartas de indulgências”.
Ou, ainda, a n.º 86 que transcrevemos:
“Porque é que o Papa, possuidor hoje de riquezas mais opulentas que as dos mais opulentos Crassos, não constrói ele com dinheiro do seu bolso a Basílica de São Pedro, em vez de a fazer com o dos pobres fiéis”.
Difundidas as teses pela Alemanha e Suíça. Abriu-se o leque dos descontentes com o comportamento da Igreja de Roma. Para Lutero, era necessário melhorar aquele conjunto de afirmações, vindas a lume em 1518, num conjunto de vinte proposições intitulado Tratado sobre as Indulgências e a Graça.
Através do papa Leão X, Lutero é condenado como herege, sendo queimados os seus livros, considerados heréticos pela Igreja, em autos de fé, nomeadamente o tratado, Sobre a Liberdade Cristã. Não foi pacífica a reacção de Lutero e dos seus apoiantes. Em 10 de Dezembro de 1520, junto da porta de Eister, em Wittenberg, acenderam uma fogueira e lançaram ao fogo a bula papal e os pergaminhos que simbolizavam o poder canónico dos Papas da Renascença. Passou esta data a ser considerada a data fundadora do protestantismo.
Traduzida a Bíblia para alemão, a Reforma toma novo fôlego, unindo pobres e ricos, letrados e iletrados. Os alemães uniram-se em volta da palavra de Deus, criando uma nova unidade. A Bíblia estava mais perto das pessoas. Já não era património exclusivo do clero, trazendo consequências transversais para toda a Alemanha, Suíça, Holanda e países nórdicos. Henrique VIII já podia dissolver o matrimónio e voltar a casar. A Bíblia traduzida por Lutero acabou com o purgatório e com as indulgências, bem como com um conjunto de práticas que dividiram definitivamente os cristãos em católicos e protestantes.
Lutero deixa de pertencer à Igreja Católica e ao Sacro Império de Carlos V. Não está só. É seguido por aqueles que discordam de Roma e que não perderam a fé: clérigos, humanistas, príncipes, gente simples e importante. A Igreja Católica continua a persegui-lo a nível político e religioso. A Universidade Católica de Lovaina e a de Paris escreveram contra ele.
A ruptura com a Igreja Católica, fá-lo adoptar preceitos que não se compaginavam com a rigidez que lhe era timbre. Não atribuindo ao matrimónio estatuto eclesial de sacramento, afirma que o matrimónio existiu desde o princípio do mundo e existe também entre os infiéis, não havendo razão para afirmar que se trata de um sacramento da nova lei ou exclusivo da Igreja.
Em Wittenberg as ideias de Lutero eram cada vez mais presentes. Karlstadt, um dos primeiros discípulos de Lutero, juntamente com Gabriel Zwilling, monge agostinho, exigia uma reforma da Igreja mais drástica, radical e mais rápida. Sugeria a extinção do celibato e das ordens religiosas. Todos os sacerdotes, monges e monjas deveriam casar.
A indisciplina, a desordem e o caos reinavam na Alemanha. Estudantes e operários, em luta contra os monges, provocavam a destruição e a ruína. Foram abolidas as imagens dos santos, criticado o baptismo das crianças, abolidos os jejuns. Alguns mosteiros foram fechados. Os monges casavam-se. Lutero intervém para que os casamentos fossem dignos, incitando-os à fidelidade à palavra de Deus.
Com a sociedade mais serena, a Reforma iniciada por Lutero espalha-se pelo mundo civilizado. Protegido pelo príncipe Frederico regressa a Wittenberg, onde continua a sua vida de professor e de pregador. Na Igreja Católica, morria Leão X, sendo eleito Papa Adriano VI.
Amado e detestado, com quarenta anos, abandona o celibato. Em 1524, decide casar com uma ex-monja, Catarina de Bora, de 20 anos, que pertencia à nobreza alemã e que aos 18 anos decidiu, com outras monjas, abandonar o convento. Da sua relação matrimonial, deu à luz seis filhos. Muito dado à família, assistiu à morte de alguns dos seus filhos, lamentando-a profundamente em cartas a amigos. Não abdicando da oração diária, em companhia da família, leva uma vida de grande disciplina e austeridade, frugal, sujeitando-se a frequentes jejuns, embora os seus opositores católicos o acusassem de comer bem e beber melhor. Bom anfitrião, não deixava de acolher em sua casa hóspedes de todos os géneros, com quem compartilhava a mesa, ao mesmo tempo que na sua porta eram recebidos mendigos. Pouco dado aos assuntos domésticos, delegava na mulher, a quem tratava por Kathe, e a quem escrevia cartas quando se ausentava.
Com a Igreja Católica a tentar resolver a crise que a avassalava, Paulo III convoca um concílio que terá lugar na cidade de Trento. Será o maior concílio da Igreja, iniciado em 1545 e terminado em 1563. A Contra Reforma tentava questionar a crise, imaginando soluções para os seus males. Passado um ano, falecia Lutero. Em 18 de Fevereiro de 1546, onde nascera em Eisleben, findara o homem que estivera na origem da maior dissidência religiosa. De morte natural, apoplexia ou angina pulmonar, é matéria de investigação para os estudiosos. Jaz na Igreja do Castelo de Wittenberg. Terá publicado mais de 400 obras, sob orientação da mulher, que administrava a casa de família.
De entre os livros escritos por Lutero, citamos: Da Liberdade do Cristão, o Catecismo Maior e Menor, do Cativeiro Babilónico da Igreja, Nascido Escravo, Somente a Fé e Magnificat.
Com o ecumenismo que o Papa Francisco e sus antecessores contemporâneos têm trazido até nós, é possível ler hoje, sem rebuço, Lutero e a sua obra. E é de uma figura grada da Igreja de Portugal, que nos servimos para a confecção deste trabalho. Em cerca de 450 páginas, o Padre Joaquim Carreira das Neves, cujo óbito ocorreu em 28 de Abril de 2017, proporcionou-nos Lutero – Palavra e Fé, editado pela Editorial Presença.
Lutero, homem do mundo, para além da grande figura da religiosidade, lida nos nossos dias, sem azedume, é, sem dúvida, uma das figuras centrais da cultura alemã.
Se as ideias de Lutero motivaram a divisão dos alemães, provocando sofrimento, guerras e conflitos, a tradução da Bíblia, suscitando a sua leitura, forneceu as bases para o desenvolvimento da língua alemã. Divulgando a Bíblia, vertendo-a para o falar da sua gente, incentiva o povo a aprender a ler e a escrever. Diminuindo a iliteracia, promove o acesso ao conhecimento, melhorando os níveis de cultura dos alemães. A religião ao serviço do povo. Lutero e os meios de comunicação com a tipografia a dar os primeiros passos. Homens da cultura, na esteira do luteranismo a divulgar teses que se opunham frontalmente ao dogmatismo da Igreja Católica, a perder apostolado, a favor do homem que, em Wittenberg, ousou enfrentar o Papa todo poderoso.
Não foi fácil o caminho percorrido até hoje. Lutero aparece durante muito tempo como uma entidade demoníaca, perversa, teimosa, contumaz. A adjectivação da negatividade que a Inquisição de forma implacável procurou exterminar. A Europa a dividir-se e a chamar a si a subjectividade da sua crença. A Ibéria, obediente ao Papa de Roma e intolerante às práticas seguidas pelas gentes do Norte, onde a França, adepta do Calvinismo, parece marcar a fronteira entre católicos e protestantes.
De herança imensa, Lutero, para muitos, criador do mundo moderno a quebrar a hegemonia de uma Idade Média, que se pautava pelo anacronismo e pela contestação silenciosa. Nome intolerado no século XVI, do Concílio de Trento, é voz corrente que o nome de Lutero servia de arremesso quando o insulto era uma arma para desfeitear o próximo. Frei Bartolomeu dos Mártires protestava vivamente quando o apelidavam de Lutero. Inadmissível, segundo ele.
De difícil aceitação no nosso país, por razões várias, Lutero viu chegada até nós a Igreja Luterana e Reformada Alemã, em 1761, por seu turno a Igreja Evangélica Luterana Portuguesa só seria fundada em 1959.
Com credos e seitas a proliferar, com a liberdade a celebrar-se por toda a parte, Lutero pouco publicado e pouco lido, é hoje nome pronunciado e gritado a plenos pulmões, ao mesmo tempo escrito sem temor em terras dominadas pelo catolicismo e onde a religiosidade abunda.
Não foi adoptado o Acordo Ortográfico em vigor