As Autarquias Locais no eclodir do 25 de Abril de 1974

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A situação vivida nas autarquias locais não se encontra na origem ou causas directas do 25 de Abril, e embora, no plano doutrinário, fosse frequentemente contestado o sistema do poder local estabelecido pela Constituição de 1933, e pelo Código Administrativo de 1936-40, a verdade é que não havia nenhum movimento organizado para o corrigir, muito menos para o substituir. No entanto, é provável que uma das causas profundas do descontentamento popular (que tornou natural a revolução) fosse exactamente a falta de autenticidade das autarquias.
No eclodir do 25 de Abril de 1974, o MDP/CDE, integrando militantes conhecidos da oposição à ditadura e estendendo-se a todo o País, ocupava uma posição privilegiada para assumir o poder local, muitas vezes com a colaboração de representantes das Forças Armadas, tendo mesmo como que se auto-constituído como estrutura representativa de toda a oposição e foi, nessa qualidade que, desde o dia seguinte, dialogou com a Junta de Salvação Nacional e com o Movimento das Forças Armadas.
Seria o 1.º de Maio a marcar o começo da tomada do poder local pelas forças da oposição, dirigidas em particular pelo Partido Comunista. A ocupação de muitas câmaras municipais e juntas de freguesia demonstra que houve o aproveitamento da mobilização popular, conseguida naquele dia, para se iniciar o assalto ao poder local, por parte de forças políticas reunidas à volta do MDP/CDE, que agrupava representantes informais do PCP, do PS e muitos independentes.
Os jornais da época relatam diversas acções levadas a cabo de norte a sul do país durante aquele dia, onde se referem decisões respeitantes às autarquias locais, em que de forma geral se dá conta da demissão dos corpos gerentes e na sua substituição por comissões administrativas.
Enquanto os partidos se organizavam, o espírito frentista e unitário do PCP manteve e estimulou o MDP/CDE para, através deste, exercer funções e nomear pessoas e individualidades que não podiam ou não queriam ser conotadas com o PCP, e a manutenção desse apoio e o seu controlo efectivo sobre as suas estruturas permitiram aos comunistas a conquista de posições-chave, quer nos municípios, quer em organismos oficiais e na administração pública.
Os meses de Junho e de Julho seriam marcados por inúmeras exonerações e dissoluções formais das autarquias locais, ao longo de todo o país, originando as primeiras divergências entre o Partido Socialista e o PCP em torno do papel do MDP/CDE, que ocupara importantes posições nas autarquias. O PS chega mesmo a propor, e posteriormente o PPD, sem êxito, a realização de eleições antecipadas em Outubro de 1974 para as autarquias locais, a fim de neutralizar a influência do MDP/CDE. 
No final de 1974, pode afirmar-se que todas as autarquias estavam “saneadas”, isto é, delas tinham sido afastadas individualidades conotadas com a ditadura, particularmente aquelas que se não apressaram, como ocorreu em muitos casos, a aplaudir o MFA e a revolução.
De facto, quando à popularidade local das anteriores autoridades administrativas se juntou a sua própria profissão de fé nos ideais democráticos e revolucionários do 25 de Abril foi difícil, e algumas vezes impossível, ao MDP/CDE, ao PCP e ao PS forçarem a substituição dessas mesmas autoridades.
Repetiu-se, em muitos casos aquele “fenómeno” político e social que, quando da queda da Monarquia, em 1910, ficou designado como “adesivagem”.
Quando se realizaram as eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de 1975, estava consumada não apenas a ruptura com o corporativismo no plano das estruturas do poder local como havia já a experiência política e social acumulada para definir um novo quadro jurídico para novas autarquias, reclamada por todos os partidos e pelas populações.
As duas ideias de força reivindicadas, isto é, a restauração descentralizadora da tradição municipalista portuguesa e a autonomia das autarquias locais, de facto, teriam acolhimento no quadro da elaboração da nova Constituição de 1976.

* Historiador
 

José António Ferreira