NÓS: TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Francisca Fernandes (T. Moncorvo 15?? - 1576)

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Ficara viúva de Bartolomeu Fernandes e tinha uns “40 ou 50 anos”- como a própria disse. Chamavam-lhe a Marzagoa, alcunha herdada do marido, possivelmente natural de Marzagão, termo de Carrazeda de Ansiães. Também lhe chamavam a Francisquinha das Cilhas, acaso porque vendia esses arreios utilizados para apertar as albardas das bestas. Com ela morava o filho Vicente Fernandes, de 25 anos, a filha Isabel, de 20, ambos solteiros e outro ainda pequeno. Havia mais um filho, já casado e morador em Carviçais.
Era o dia 22 de Abril de 1574. De casa de Francisca saíam gritos e impropérios. Acorreram estranhos, entre eles Francisco de Castro, um homem da nobreza da terra que prestou o seguinte testemunho:
- Passando à porta de seu irmão (Gaspar de Lobão), ouviu revolta à porta da mãe de Isabel Fernandes e acudiu com outros e acharam a dita Isabel Fernandes presa na casa, e a tinha presa um irmão que estava na casa com sua mãe. E o dito seu irmão apertava que ela chamasse o nome de Jesus e ela em vez de chamar assim, dizia: arrenego de Jesus; e o irmão deu nela e a dita Isabel disse: se tu és judeu, como me dizes que chame pelo nome de Jesus? (1)
Imagina-se o desespero da mãe e do irmão ouvindo-a gritar semelhantes impropérios, ainda para mais agora, na presença de gente cristã-velha. Com efeito, Isabel estava furiosa, como endemoninhada, e continuava a gritar:
- Os cães mataram ao Justo André Dias e o mataram na Praça! Eu sou judia e vós sois judeus e todos os da nação que há nesta terra são judeus!
A notícia do caso correu a vila, como fogo em rastilho de pólvora. O vigário geral, comissário da inquisição não estava e, por isso, competia ao juiz de fora (2) tomar as providências necessárias. E logo mandou buscar a rapariga e a interrogou. Depois mandou que a metessem na cadeia da comarca.
A crer nos testemunhos do carcereiro e da sua mulher, Isabel continuaria na cadeia a afirmar-se judia e a chamar por Adonay “que nascera primeiro que Jesus”. Dizia que não acreditava no santo sacramento e não queria confessar-se, antes “perguntava quando a haviam de queimar”.
Enquanto isso, o juiz de fora escreveu para a inquisição de Coimbra enviando os autos da prisão e interrogatório de Isabel Fernandes, bem como os depoimentos de várias testemunhas e dizendo nela:
- Vossas mercês ordenem dar ordem como seja levada a essa casa da santa inquisição com brevidade, e se faça o serviço de Deus, antes que outros semelhantes a corrompam, que, segundo ela diz, todos os da sua nação (que são muitos nesta vila) vivem na sua mesma lei. E eu por descargo de minha consciência, lembro a vossas mercês que convém ao serviço de Nosso Senhor dar-se remédio para se devassar nesta vila pela muita presunção que há de todos serem judeus.
Não chegou a prisioneira a sair de Torre de Moncorvo. Dias depois apareceu morta no cárcere, dizendo-se “que lhe deram peçonha”, se bem que o mesmo juiz escrevesse, em nova missiva para Coimbra:
- Não se sabe a causa da sua morte porque o corregedor me informou com muita curiosidade que não se pode saber se tivera alguém nisso culpa.
Enquanto Isabel era presa e interrogada e metida na cadeia, a mãe e os irmãos deixavam Torre de Moncorvo e metiam-se em fuga a caminho de Castela. Estes não conseguiram “dar o salto” pois foram presos em Freixo de Espada à Cinta. Aquela conseguiu alcançar Vilvestre, do lado de lá da fronteira. Ali foi presa pelo alcalde da vila. Porque a prendeu? Por ser judia e ir fugida? Talvez, que a fama de judeu corria mais veloz que o próprio “judeu errante”. Porém, a Marzagoa tinha uma explicação mais prosaica:
- Disse que a prendera o alcaide porque o seu burrico lhe fora à sua cortinha.
Facto é que o interrogatório feito pelo alcalde de Vilvestre tem data de 20 de Maio e a ordem de prisão emitida pelo tribunal da inquisição de Valhadolid só aconteceu em 21 de Junho seguinte. Dias depois era ali entregue a prisioneira.
Foi terrível a estadia em Valhadolid. A ponto de o médico do santo ofício escrever que “tiene gran cosa de sarna y cámaras”. Mas a sarna e as cámaras não impediram que ela fosse posta a tormento, de onde saiu “aleijada dos pés e quase das mãos”. Faziam-lhe perguntas as mais diversas e ela repetia:
- Dijo que no tiene que decir Y que la dejen.
Por conselho do médico, decidiram os inquisidores mandá-la tratar no hospital. Ali esteve uns 5 meses, com resultados muito pouco animadores e os médicos a concluírem que “Francisca Fernandez era mente capta y de poco juicio”.
Levada do hospital para as masmorras da inquisição foi apresentada aos senhores inquisidores em 23.1.1575. Vejam um pouco do que ficou registado na ata da sessão:
- Estando presente muy enferma y flaca mandaran ler las confesiones que hizo en la villa de Vilvestre ante Domingo Pérez alcalde ordinário en la dicha villa y leyendo y perguntando si entendía, unas veces decía que si otras veces decía que no, de manera que no se pudo entender de ella cosa de sustância diciendo que la dejasen, lo cual hablaba com mucha pena y flaqueza (…) e pareció estar desmayada y así los señores inquisidores la mandaran sacar de la sala de audiências en peso…
Certamente que desejavam ver-se livres da pobre mulher mas… também não haveria muita vontade de a receber em Coimbra. E isso explicará que tenham passado mais 5 meses para ao inquisidores de Valhadolid decidirem mandar ao comissário do santo ofício em Zamora que a fizesse levar ao bispo de Miranda para a entregar em Coimbra, onde chegou em 25.6.1575, 14 meses depois da fuga de Torre de Moncorvo.
No mesmo dia o inquisidor Diogo de Sousa tomou conta do processo e as primeiras diligências visaram saber se a ré “era mulher de perfeito juízo e memória”. Para isso começou por ouvir o alcaide dos cárceres que respondeu:
- Ela entrou neste cárcere aleijada dos pés e quase das mãos e que não se move de onde a põem (…) e sai da cama de gatinhas (…) ele testemunha a tem por melanconizada por ser presa e aleijada. E diz que a matem já, para que a querem aqui (…) e não tem conta de sua ração e toma o que lhe dão…
Idêntico foi o testemunho do guarda Francisco declarando:
- Da maneira que entrou neste cárcere está ainda agora; posto que aleijada, ao presente se sai da cama aos tombos, o que não fazia antes. E pela tal enfermidade, parece a ele testemunha que ela é melanconizada e anojada…
Pobre coitada, aleijada de corpo e a alma despedaçada, Francisquinha das Cilhas pedia que a matassem, para que a queriam ali?... Contudo, reunindo a Mesa em 18.8.1576, “pareceu à maior parte dos votos que a ré não estava em termos de ser despachada ao presente, por não assentar na sua confissão e haver dúvidas de seu juízo, que ficasse reservada no cárcere”.
E a estropiada ali ficou a apodrecer nas húmidas masmorras e escuras. Até que, em 3 de novembro de 1576, às 10 horas da noite, entregou a sua alma a Deus. Qual deles: o dos cristãos ou o dos judeus?
Era sábado, quando Francisca faleceu e a inquisição não funcionava e só na segunda-feira seria o feito retomado. Por isso o alcaide foi a casa do inquisidor Diogo de Sousa o qual mandou que o seu cadáver fosse “depositado dentro do cárcere em lugar secreto”. E assim foi enterrada “na casa antiga das diligências, como ele senhor inquisidor mandara”- no dizer do alcaide.
Algum cristão em Torre de Moncorvo terá rezado uma oração por sua alma? E algum judeu aceitará a oração marrana que sua mãe lhe ensinou e ela rezava ao lavar as mãos? Vejam, como consta do processo:
- Bento tu Adonay e Nosso Senhor rei sempre que nos mandou e nos encomendou nossas encomendanças santas e bentas para sobre lavadura de nossas mãos; e rezou nele o quos e os buracos descobertos e sabidos para a sobre lavadura de suas mãos.
NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 445, de Francisca Fernandes.
2-Diogo Dias Cardoso se chamava o juiz de fora. Natural de Fronteira, matriculado na universidade de Coimbra em 1554, concluiu a licenciatura em Leis em 29-7-1560 – Arquivo da Universidade de Coimbra. O vigário geral, António Soares, encontrava-se no Felgar. Dias depois escrevia para Coimbra dizendo: - Se eu estivera na terra e dela tivera culpas, ao tal tempo, não se dilatara tanto na cadeia nem sua mãe e irmão fugiriam; no que foi para mim muita desconsolação. (…) E também falam em sua mãe a qual está presa em Castela  e se diz que nas perguntas que lhe lá fizeram descobriu muita terra.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães