A imagem que ilustra o texto, provavelmente da autoria do falecido fotógrafo Sr. Peixe, mostra a Praça de Torre de Moncorvo, decorada com vasos de flores “roubados” das varandas da vila em uma noite de S. João, na década de 1960. Era nesta Praça que tinha a sua loja e casa de habitação o mercador Pedro Henriques. Em boa verdade as casas eram de duas irmãs suas, ambas viúvas, já que ele se mantinha solteiro aos 33 anos, quando o referenciamos. Nascido pelo ano de 1523, Pedro era filho de Henrique de Miranda e sua mulher Filipa Dias. Tinha também um irmão chamado António Henriques.
Gaspar de Lobão, um homem da nobreza moncorvense e cristão-velho, falava dele como “homem rico e abastado e de grosso trato (…) conhecido na Torre e nas outras partes por homem de verdade”.
Diogo Pinto, moço da câmara d´el-rei, natural de Mogadouro acrescentava que era homem de muito crédito e que o via “tratar em tratos grossos”, nomeadamente nas feiras de Medina del Campo onde o acompanhou e com ele ficou alojado “por espaço de uns meses” na mesma pousada.
Temos informação que para uma dessas feiras, Pedro Henriques levava na carteira 500 cruzados (200 mil réis!) que lhe confiou António Domingues de Madureira, cavaleiro fidalgo “para os empregar em Medina”. Casualmente soubemos desta operação financeira porque ela se não concretizou, em virtude de “leis pragmáticas” que então foram promulgadas. (1) Mas esta informação é muito importante por nos mostrar um pouco do mundo empresarial de Pedro Henriques. Provavelmente não seria apenas aquele António Domingues a confiar-lhe os seus capitais para lhos fazer render. Outros haveria e isso nos permitirá afirmar que Pedro Henriques era um “gestor de contas” ou de “aplicações financeiras”, como hoje usa dizer-se.
O mesmo se conclui do testemunho de Francisco Garcia “escudeiro fidalgo, morador no lugar de Almofala”, na Beira, que tinha um filho a viver em Freixo de Espada à Cinta e lhe disse que “quando der certo dinheiro para tratar a alguma pessoa, que não o desse senão ao dito Pero Henriques, que era homem de muita verdade”. Como se vê a fama de Pedro Henriques como honesto executor de investimentos financeiros, não se limitava à sua terra mas ia bem longe e entre a classe da nobreza e cristã-velha.
Por outro lado, temos o depoimento de muitas pessoas dizendo que ele emprestava dinheiro. Outros, inclusivamente dizem que lhe são devedores. Foi o caso de um criado da infanta D. Isabel que apareceu a testemunhar que o viu a “emprestar dinheiro a homens da terra e que a ele testemunha também emprestou 4 mil e tantos réis”.
Não seriam empréstimos desinteressados, naturalmente, antes renderiam juros e isso prova também que Pedro Henriques desenvolvia atividades bancárias. Aliás, sempre foi atividade peculiar dos judeus emprestar dinheiro a juros, até porque a igreja católica condenava a usura.
Isto não pode fazer-nos esquecer que a atividade principal do nosso biografado era a de mercador. E encontramo-lo a mercadejar no Algarve e pelo Alentejo, a comprar mercadorias em Lisboa e mandá-las para Torre de Moncorvo.
E também o encontramos na capital do reino a arrematar a renda da comenda de Rio Torto e Longroiva, devendo então acrescentar-se-lhe o título de rendeiro.
Situemo-nos agora em Torre de Moncorvo, em finais de Março de 1556, quando a inquisição ali fez a sua primeira entrada, levando presas para Lisboa 3 pessoas acusadas de judaísmo. (2)
Nesse dia já Pedro Henriques não estaria em Moncorvo, pois se abalara para o Alentejo e Algarve, antes do entrudo, chegando a Lisboa no dia anterior à Páscoa. Isto foi o que ele contou e algumas testemunhas confirmaram, quando se viu preso também ele, em finais de Maio daquele ano.
A história contada pelo promotor do mesmo tribunal, com base nos depoimentos de outras testemunhas, é um pouco diferente. Assim, Pedro Henriques estaria em Torre de Moncorvo quando prenderam aquelas 3 pessoas. E sendo homem de muitos conhecimentos e grande expediente, meteu-se a caminho de Lisboa com o objetivo de saber quem denunciou aqueles concidadãos e “tirá-los da cadeia” ou, pelo menos, ajudá-los a safar-se.
Viria a descobrir que um dos denunciantes foi Francisco Rodrigues Trindade, enteado de Isabel Lopes, estalajadeira, que antes fora casada com um primo dele, Pedro Henriques. E sabendo que Francisco estava em Évora, foi atrás dele e encontrando-o, tudo fez para que lhe contasse que coisas dissera na inquisição e que pessoas denunciara. Inútil.
Francisco voltou a Lisboa onde tinha a mulher e um filho e Pedro também. Soube que aquele ganhava uma miséria e “andava aqui perdido a morrer de fome”, trabalhando de escriturário eventual com escrivães da alfândega quando o serviço ali apertava.
E foi o próprio Trindade que lhe falou de um tio rico que tinha em Cabo Verde e lhe escreveu a mandá-lo ir, que ali se ganhava muito dinheiro. Confessou que gostava bem de ir mas não tinha dinheiro para comprar roupa e comida e pagar a viagem.
Isso não era problema. Pedro Henriques ficaria contente de poder ajudar um conterrâneo em dificuldades. Para além disso tinha um grande amigo ali em Lisboa chamado Duarte de Leão que conhecia como poucos as ilhas de Cabo Verde e os rios da Guiné de onde transitou para ocupar o cargo de fator d´el-rei na Casa da Guiné, por ele passando muito do negócio dos escravos daquela região. (3) Ele escreveria cartas de recomendação para Francisco Trindade levar. Certamente conhecia o seu tio.
Estando já metido no barco para seguir viagem rumo a Cabo Verde, com bagagem que custou 2 mil réis adiantados por Pedro Henriques, Francisco viu-se impedido de seguir por ordem do juiz que ali apareceu no seguimento de uma queixa apresentada pela sua mulher, que antes tinha já contactado o tribunal da inquisição, parece que, de combinação com o marido.
Posto em terra, Francisco e a mulher dirigiram-se ao tribunal da inquisição contando que Pedro Henriques veio de Torre de Moncorvo com o objetivo de soltar os presos de que atrás se falou. Para isso valeu-se da pobreza do Trindade e, com promessas de riqueza e ameaças de morte, o obrigou a embarcar, ficando assim impedido de ser ouvido em declarações nos processos dos mesmos prisioneiros. Acusado de ser fautor de hereges, o mercador foi preso pela inquisição de Lisboa. (4)
Obviamente que ele contou uma história diferente, dizendo que o Trindade é que lhe pediu e lhe mostrou a “carta de chamada” do tio e que ele, como “homem de verdade”, apenas quis ajudá-lo, usando da caridade cristã e que não tinha qualquer interesse na libertação dos ditos presos pois nenhum deles era de sua família. De contrário, Francisco é que queria fugir pois tinha medo que na inquisição se descobrisse que ele mentira e fizera denúncias falsas.
Acabou condenado como “leve suspeito na fé”, com a sentença lida na missa de domingo, 19 de Julho de 1556, na igreja do Hospital de Todos os Santos, em cárcere a arbítrio dos inquisidores. O seu processo é extremamente interessante. Por um lado, assemelha-se a um verdadeiro romance policial. Por outro revela uma invulgar argúcia e capacidade de raciocínio tanto da parte de P. Henriques como de F. Trindade, bem como uma sólida argumentação tanto da parte do promotor de justiça como do advogado de defesa.
Regressado a Moncorvo, Pedro Henriques terá casado, abalando depois “com sua mulher e casa para Florença” para professar abertamente o judaísmo, segundo informação dada pelo Dr. André Nunes, em 1583.
NOTAS e BIBLIOGRAFIA:
1-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, tif. 32: - Não os podendo ele réu empregar por razão das pragmáticas, ele réu pôs em depósito 300 cruzados desses 500 e com eles soltou um português que estava preso em Valhadolid. – Curiosa esta aplicação financeira!
2-IDEM, pº 3123, de Isabel Lopes.
3-Francisco Jorge, um irmão de Duarte de Leão era então o superintendente da feitoria de Buguendo, na margem do rio de S. Domingos, na atual Guiné-Bissau onde a sua atividade consistia em comprar escravos aos chefes tribais africanos, vendendo-lhes cavalos, roupas armas e bigigangas. Ocupando o lugar de escrivão d´el-rei em Cabo Verde, visando o controlo da venda de escravos e pagamento do respetivo imposto estava então um sobrinho de ambos, chamado Luís de Carvajal, que viria mais tarde a celebrizar-se como o Conquistador do Nono Reino de Leão, no México. Ver: ANDRADE e GUIMARÃES, Marranos de Trás-os-Montes na rota do comércio de escravos da Guiné para as Américas, in: jornal Terra Quente, de 01.07.2012.
4-ANTT, inq. Lisboa, pº 6771, de Pedro Henriques.