Os 27 anos de vida que teve José Rodrigues Mendes antes de conhecer a Casa da Inquisição foram de verdadeira tempestade em Bragança, no que respeita à questão religiosa. A sociedade brigantina foi então varrida por vagas sucessivas de prisões. Repare-se: contando a cidade 500 fogos e uns 2000 moradores, (1) cerca de 500 pessoas compareceram naquele tribunal durante aqueles 27 anos!
Pois foi neste ambiente que se moldou a personalidade de José Rodrigues, como, aliás, a de todos os meninos e meninas nascidos “sem condição”. E frequentava a catequese onde lhe ensinavam que Jesus era misericordioso e bondoso e foi crucificado pelos malévolos judeus! Impossível imaginar como esta catequização cristã se conjugava com as vivências quotidianas, com os medos e as angústias que enchiam a casa de seus pais e dos mais familiares, bem como as conversas com todos os brigantinos da sua condição hebreia. Aliás, a lista de membros da família Gorjão, a que ele pertencia, era já mais comprida que a légua da Póvoa. Avós, tios… que quase todos eles tinham estagiado nas masmorras do santo ofício. E a lista haveria de continuar a crescer, com a sua própria prisão e a de 2 irmãos e muitos primos seus.
Impossível, pois, imaginar as dúvidas e angústias de sua alma quando, pelos 12 anos, lhe ensinaram que tudo o que aprendera na igreja dos cristãos era mentira, mas que tinha de viver com aquela mentira e continuar a frequentar a igreja dos cristãos “para contemporizar com o mundo”! Mais difícil ainda imaginar o ambiente de tragédia que viveu nessa altura quando todos os bens de sua família foram sequestrados e vendidos na praça, ao mesmo tempo que seu pai (Lourenço Rodrigues Mendes) e sua mãe (Luísa Pereira) regressavam a Bragança, infamados de judeus e vestidos de sambenito, expostos à irrisão pública. (2)
Chegado à maioridade, José R. Mendes abandonou Bragança e dirigiu-se a Lisboa. Dali embarcou para Inglaterra e, em Maio de 1727, encontrava-se em Londres. Aí, entre a “gente da nação” pontificava a família Costa Vila Real, originária de Bragança e a colónia de judeus trasmontanos era enorme e poderosa, em termos de economia e finanças. Amigos e conhecidos, como ele fugidos de Bragança, ter-lhe-ão disponibilizado toda a ajuda mas, antes, teria de frequentar a sinagoga, receber instrução da lei mosaica e circuncidar-se. Neste processo terá sido particularmente relevante a sua convivência com o porteiro da sinagoga de Bevis Marks, o brigantino Luís Sá, irmão de Alexandre (Isaac) de Morais, este casado com uma filha de João (Abraão) da Costa Vila Real. Foi o que aconteceu naquele mês de Maio. Vejam a narrativa feita pelo próprio:
- E logo ali foi conhecido, porquanto na mesma sinagoga viu alguns portugueses e entre eles conheceu José da Costa Vila Real, morador na cidade de Lisboa; e falando com o mestre da sinagoga, que era estrangeiro e não lhe sabe o nome, este lhe disse que era necessário que se circuncidasse; e com efeito, dali a 4 ou 5 dias, foi ele declarante circuncidar-se a casa de um homem que não sabe o nome, também estrangeiro, e 10 pessoas assistiram ao ato da circuncisão; e se lhe pôs o nome de Moisés Mendes Pereira. (3)
Foi curta a sua estadia em Londres. Por qualquer motivo que não conseguimos apurar, em Agosto seguinte, o nosso homem encontrava-se em Bayonne onde contactou também com muita gente da “nação de Bragança”, nomeadamente dois filhos do capitão Farrapa, natural de Chacim: Hilário (Abraão) Lopes Ferreira e Pascoal (Isaac Lopes Ferreira). Antes teria viajado pela Holanda, onde assinara o seu nome nos livros das sinagogas de Roterdão e Amesterdão.
Seria esta viagem por Londres, Amesterdão e Bayonne uma viagem de prospeção de negócios, muito em especial visando a colocação de produtos de seda, atividade em que laborava a sua numerosa família e a maioria das famílias hebreias de Bragança?
Conjuga-se esta hipótese com o facto de, em Dezembro seguinte, depois de ter regressado a Bragança por Madrid e Valladolid, se ter ido apresentar no tribunal da inquisição de Coimbra a confessar que judaizara e disso pedir misericórdia? Na verdade essa era a tática de muita gente e, de Bragança para Coimbra, chegariam a organizar-se verdadeiras peregrinações de marranos que iam apresentar-se. É que, com tal procedimento, evitavam que os bens lhe fossem confiscados e geralmente não ficavam presos. Apenas eram levados ao auto público da fé e condenados em ligeiras penas espirituais. E foi o que aconteceu com Moisés Mendes que, tendo regressado a Bragança, recebeu ordem para se apresentar em Coimbra em meados de Abril, para ser novamente examinado, posto o que, saiu condenado em penas espirituais no auto de 9 de Maio de 1728.
Regressou a Bragança e tudo parecia muito bem encaminhado, andando ele em perfeita liberdade. Porém, no dia 3 de Abril de 1729, o comissário da inquisição da cidade de Bragança escrevia para Coimbra uma carta do teor seguinte:
- Ilustríssimos Senhores. João Fernandes, criado de Manuel da Costa Silva, morador nesta cidade de Bragança, me deu parte que, haverá 2 ou 3 meses, estando ele em um quintal das casas de Manuel da Costa, ouviu dizer a José Rodrigues, solteiro, cristão-novo, filho de Lourenço Rodrigues, o Gorjão, desta cidade, que ele queria morrer pela lei de Moisés, o que repetira duas vezes, e que isto ouvira também António, solteiro, criado, o dito Manuel da Costa e Ana Henriques, viúva que ficou de Sebastião Pires, desta cidade, me deu também parte que, há 2 ou 3 meses ouvira dizer ao sobredito José Rodrigues o seguinte: - “Que ele cagava na Inquisição” e que “queria morrer queimado para ir para o céu”.
Era uma acusação muito grave e abonada de 4 testemunhas e, por isso, foi logo mandado prender, sendo metido nas masmorras do santo ofício em 27 de Outubro de 1729. Começava então a sua subida para o calvário. Uma subida que acabou em tragédia, com a morte na fogueira acesa no auto da fé de 6 de Julho de 1732 em Lisboa. Sim: no 1º de Março daquele ano, o réu foi transferido da cadeia de Coimbra para a de Lisboa, certamente para ser bem “espremido” e lhe sacarem todas as informações sobre as comunidades judaicas de Londres e Bayonne.
Em uma das audiências diria aos inquisidores que encontrou na Bolsa (“que é uma espécie de praça onde todos os dias há feira”) um homem que antes fora guarda da inquisição de Coimbra, “o qual segue a lei de Moisés, o que é público entre os judeus daquela cidade (…) e os mesmos judeus lhe estão assistindo com tudo o necessário, mas não o querem admitir no grémio da sinagoga, por este ser cristão e gentio”. Interessante também a narrativa que fez sobre um judeu de Bragança chamado Francisco Lopes Franco que “para entrar na sinagoga, o purificaram primeiro por meio de muitos banhos e cerimónias e está hoje um grande judeu”. Não caberá neste pequeno texto o tratamento daquelas informações, muito importantes, aliás, para o estudo da diáspora Marrana Trasmontana. Disso falaremos em outras ocasiões. Por agora ficamos com um dos argumentos de sua defesa:
- Disse que nunca tivera crença na lei de Moisés (…) e que se circuncidara por dinheiro, porque lhe deram 100 moedas de ouro, e lhe queriam dar muito mais se ele não tornasse a este reino.
NOTAS:
1-COSTA, António Carvalho da – Corografia Portugueza, Tomo I, p. 496, Lisboa, 1706.
2-ANTT, inq. Coimbra, pº 1563, de Lourenço Rodrigues; IDEM, pº 8486, de Luísa Pereira.
3-ANTT, inq. Coimbra, pº 4939, de José Rodrigues Mendes, sessão de 12 de Outubro de 1731.
Por António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães