PUB.
PUB.

NÓS TRASMONTANOS, SEFARDITAS E MARRANOS - Manuel da Costa (n. Bragança – f. Granada)

Manuel da Costa nasceu em Bragança, no primeiro quartel do século XVII, no seio de uma importante família de mercadores cristãos-novos. Cedo começou a viajar por Castela. Por 1635 casou em Torre de Moncorvo com sua parente Isabel da Costa e ali fixou residência. Continuou fazendo viagens de negócios para além da fronteira, e conhecia “todos os lugares grandes de Castela”. A situação alterou-se com a revolução de 1640 e o encerramento das fronteiras, motivado pela guerra entre os dois países.
A guerra, as dificuldades financeiras do governo, a política do rei D. João IV em desfavor da inquisição, fizeram os cristãos-novos assumir o compromisso de uma avultada contribuição monetária destinada sobretudo à compra de barcos para a “carreira do Brasil”. E para repartir esta contribuição foram nomeados, em cada comarca, os chamados “fintadores da bolsa”. Pois na comarca de Torre de Moncorvo, um dos fintadores nomeados foi exatamente o nosso biografado. Isso mostra como ele ocupava um lugar de destaque no seio da comunidade marrana da região. (1)
E no desempenho desta missão criou ele muitos inimigos, alguns deles bem poderosos e influentes. Um deles foi Domingos Lopes Bastos, homem muito rico, que se dizia cristão-velho e se preparava para assumir um cargo na governação. Porém, o nosso “fintador” teve notícia que ele tinha parte de cristão-novo, tal como sua mulher, Helena da Cruz. E então lançou-lhe a “finta” de 70 mil réis. Protestou Domingos, mas acabou por confessar que efetivamente tinha uma costela de judeu e pagaria os 70 mil réis mas às ocultas, debaixo de outro nome pois assim ficaria desacreditado e não entraria para o cargo na governação. Manuel da Costa não foi pelos ajustes…
Problema semelhante arranjou ele com Manuel Lopes, o tio bom, de alcunha, mercador de Viseu que, em Moncorvo morou algum tempo e preparava-se para abalar para Viseu levando uma cavalgadura e fazendas. Dizia-se também cristão-velho, mas o “fintador” tinha informação diferente e não o deixou partir sem pagar o “dinheiro da bolsa”.
Alvarenga e Montes eram nomes de duas das famílias mais nobres de Vila Flor, sem gota de sangue judeu – diziam eles. Vejam como o Costa se lhes refere:
- Disse que Manuel Alvarenga e Gregório Montes, de Vila Flor, são inimigos porque, sendo ele réu um dos fintadores da bolsa e sendo eles fintados para a bolsa, tiveram para si que ele réu os manifestava dizendo terem parte de cristãos-novos e sendo que eram cristãos-velhos, e que ele réu fizera muitas diligências para os descobrir e infamar. 
Prova também da influência e poder económico de Manuel da Costa é o facto de ele ter sido contratador do sabão, substituindo Francisco da Cunha, marido de sua cunhada Beatriz da Costa, (2) quando esta foi presa pela inquisição, em setembro de 1647 e aquele se abalou de Moncorvo.
Acrescentemos que Beatriz acabou condenada à fogueira e que a história da família Costa nas cadeias do santo ofício era já então mais longa que a linha do comboio. E por isso mesmo a mãe, os irmãos e muitos tios e primos de Manuel da Costa tinham fugido para Espanha e quase todos eles viviam em Granada onde tinham o monopólio da distribuição do sal. E quando chegava o “dia grande” do Kipur, a família reunia-se na celebração desta festa, a mais sagrada do calendário judaico. Vejam como ele próprio contou para os inquisidores:
- Disse que há 22 anos a esta parte, até ao levantamento do Reino, do qual tempo para cá deixou de ir a Castela, se achou muitas vezes com a sua mãe e a sua irmã Maria da Costa, agora casada em Granada com Luís da Costa, e com Leonor da Costa, também sua irmã agora casada em Granada com um mancebo de Trancoso, e com seu irmão Diogo Nunes, casado em Antequera com Catarina da Costa e são tratantes e estão ora juntos, ora separados, e faziam juntos o Kipur e outras cerimónias.
Como que respondendo ao apoio dos cristãos-novos ao governo do rei D. João IV, a inquisição lançou uma verdadeira “guerra” contra o rei. E promoveu autênticas campanhas de extermínio da “gente da nação” em algumas terras, nomeadamente em Trás-os-Montes. Foi o caso de Torre de Moncorvo onde, em 1641, o comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos, despachava a seguinte informação para o Conselho Geral:
- Lembro a vossas mercês (…) que a Torre de Moncorvo é terra nova em que importa ao serviço de Deus entrar a inquisição, que fez muito fruto entrando em Quintela e Sambade. (3)
No meio do furacão foi também apanhado Manuel da Costa, preso pela inquisição de Coimbra em 14 de Junho de 1651. Foi mesmo acusado de ser o “ escrivão chamador”, ou seja: era ele que convocava os outros para as reuniões em “sinagoga”. Como geralmente acontecia, acabou por confessar-se culpado de judaísmo e que foi sua mãe, logo em pequeno, que o catequizou. Do rol das suas confissões, vamos apenas retirar um excerto narrando uma cerimónia judaica feita em conjunto com o cirurgião Domingos Lopes Bastos, no sítio da quinta do Cuco. É uma narrativa cheia de lirismo e ritualidade judaica. Vejam:
- Haverá dois anos, indo para a Açoreira, em companhia do referido Domingos Lopes Bastos, no caminho que vai pela Senhora da Riba Cavada, entre umas vinhas, por donde corre a água, se apeou e lavou as mãos e os olhos e a boca, e correu a mão pelo rosto abaixo três ou quatro vezes, e rezava baixo, de sorte que não ouvia, com o rosto para o céu, e lhe parece que era mais para o nascente, antes de nascer o sol. E porquanto ele confitente usava também da dita cerimónia por observância da lei de Moisés, por lha ter ensinado sua mãe.
Não sabemos que oração era aquela, mas podia ser a mesma que depois ele próprio ditou para o processo e costumava rezar quando lavava as mãos:
- Bendito tu Adonay nosso Dios y de nuestros padres que nos fizeste e nos creaste e nos santiguaste sobre o lavar de nuestras manos. Amen.
Manuel da Costa saiu condenado em cárcere e hábito penitencial, no auto público da fé celebrado em 14 de Abril de 1652. Podia regressar à terra mas… teria de apresentar-se na missa de domingo vestindo o saco amarelo por cima do fato. E isso era infamante para um homem da sua posição social. Porventura mais difícil de suportar do que a própria cadeia.
Regressou a Torre de Moncorvo mas ninguém o viu com o sambenito vestido. Aliás, teria confidenciado que “mesmo que o queimassem, não havia de trazer o hábito”.
A notícia chegou ao comissário Pedro Saraiva que o mandou chamar e “lhe mandava que cumprisse a dita penitência muito inteiramente, trazendo o hábito por cima das suas vestiduras, de modo que possa ser visto por todas as pessoas”. Manuel da Costa prometeu cumprir a penitência mas…
O pior é que a sua mulher e outros parentes que com ele saíram no mesmo auto condenados em hábito andavam igualmente sem o sambenito. E essa era uma situação intolerável, um ato grave de desobediência e desprezo pelo santo tribunal. Por isso foram todos chamados pelo comissário que os admoestou e avisou das perigosas consequências de tal procedimento. Veja-se o resultado, conforme escreveu o mesmo comissário para a inquisição de Coimbra:
- Tanto que foram admoestados, não apareceram mais nesta vila, sendo público que fugiram para Castela (…) Uma irmã de Manuel da Costa disse, o dia antes que fugissem, que eles se iam para não cumprir a penitência (…) Fugiram desta vila e como não tinham fato, por ter sido confiscado, não foram sentidos, nem tive notícia da sua fugida, para os mandar prender pela justiça secular. (4)
Manuel da Costa e a mulher fugiram para Granada onde tinham vasta parentela trabalhando na distribuição do sal, sendo o seu primo Francisco de Albuquerque, administrador daquele monopólio. Mas foi com Francisco Lopes Pereira, natural de Mogadouro e que com ele partilhou as celas da inquisição de Coimbra, que Manuel da Costa fez uma sociedade comercial, arrematando a venda do tabaco na mesma região.
Foram poucos os anos de vida de Manuel da Costa em Granada pois que, em 1660 já era falecido e o estanco do tabaco andava só por conta de Francisco Lopes Pereira. (5) A sua mulher e o seu filho Don Luís da Costa, então com uns 18 anos, traziam arrendada a venda do sal na região de Vellez.
NOTAS:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 9486, de Manuel da Costa.
2-IDEM, inq. Lisboa, pº 790, de Francisco da Cunha; inq. Coimbra, pº 1952, de Beatriz da Costa.
3-IDEM, pº 5022, de Francisca Vaz.
4-Henrique Dias da Costa e sua mulher Beatriz Marcos foram outros dos que fugiram. Pedro Rodrigues Brandão foi apanhado pelo comissário Saraiva de Vasconcelos que “ o achou fugindo escondido sobre uns telhados (…) e achando-o saindo do dito telhado, disse que para não trazer o hábito se havia de ir para Castela e que todos haviam de fugir e despovoar o Reino”.
5-ANTT, inquisição de Lisboa, processo 2744, de Gaspar Lopes Pereira.

Vendavais - Os piores cegos….

As últimas sondagens dão ao partido socialista uma subida notável e à beira de dispensar o apoio tanto do BE como do PCP. Ou seja a geringonça está prestes a desfazer-se!
A simplicidade com que se faz um telefonema e se juntam respostas a uma ou duas questões pré formuladas e com objetivos claros, levam a ter percentualmente um resultado que pode interessar ou não a quem for o objeto do inquérito. As sondagens são o que são e embora não sejam infalíveis, também não são totalmente despiciendas. O interesse delas é que animam as guerrilhas internas especialmente no que diz respeito aos partidos envolvidos nelas.
O facto do PS estar a subir nessas sondagens e situar-se no 42%, faz supor que, a continuar esta subida, o partido socialista irá dispensar o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, desfazendo assim a tal geringonça que lhe permitiu governar numa situação em que tinha perdido as eleições nacionais. Os amigos de ocasião passarão assim aos eternos opositores, dispostos a lutar novamente contra aquele que os ajudou a ter igualmente, alguma visibilidade política. Mas não nos enganemos. Estamos longe das eleições e as polémicas estão agora a começar.
De facto, são várias as vertentes em jogo neste tabuleiro político. A iniciar está no centro Centeno, que se vê acossado pela oposição quanto ao problema da Caixa Geral de Depósitos e sua administração. É uma nódoa que se alastra e que pode não sair facilmente por mais que se lave o fino tecido em que caiu. Será que a ida à Comissão parlamentar para prestar esclarecimentos vai resolver alguma coisa? Afinal há cartas escritas e, segundo parece, o rabo está preso aí mesmo. Quem o irá soltar? Domingues acederá a esclarecer alguma coisa, entalando quem o tentou ajudar? É certo que Domingues fixou salários, incluindo o seu e Centeno aceitou. Há ou não acordos entre os dois? Terá de passar ainda muita água debaixo desta ponte para limpar as nódoas que se vislumbram. E não nos esqueçamos que ela alastra até Belém.
Mas se o PS continuar a subir nas sondagens e acabar por ganhar as eleições, é necessário prepararmo-nos para deixar de ouvir falar de benesses e passar a ter atenção aos cortes que se avizinham passando novamente a uma austeridade galopante. Sim, porque não há milagres a este nível na economia. Ou se tem para pagar, ou não se tem e nós não temos. Todos sabemos disso. A divida portuguesa é astronómica e iremos pagá-la durante os próximos cem anos. Parece muito? Pois parece. O Governo disse que vai entregar ao FMI uma tranche nas semanas próximas no valor de 1,6 mil milhões e até adiantou já os valores aproximados das próximas entregas. Com este ritmo de entregas anuais, levaremos cerca de 80 a 100 anos para liquidar a dívida. Claro que as coisas não se processam com esta simplicidade, pois admito que alguma coisa melhorará neste ciclo económico de crise. Mas são muitos milhares de milhões para pagar e a divida não pára de crescer diariamente. Quem vai herdar este fardo enorme? Parece, no entanto que, segundo informações do governo, já se pagou cerca de 42,5% do empréstimo inicial e a ser assim, talvez consigamos pagar tudo em menos tempo. Talvez! O que nos deixa um pouco descansados é que seremos sempre fiscalizados enquanto não chegarmos a um nível inferior a 200% da dívida. Já imaginaram? 200% da dívida! Uma enormidade.
Se, num laivo comparativo um pouco marginal, dissermos que em Lisboa todos os meses fecham cinco lojas comerciais históricas, isto não ajuda nada a resolver o problema da dívida.
Seja como for, podemos preparar tudo para a suposta vitória do PS nas próximas eleições, mas sem esquecer que se eles endividam cada vez mais o país, será bom que sejam eles a pagar essa dívida, porque estar à espera que outros venham pagar o que eles ficam a dever é pouco ético. É que, em terra de cegos, quem tem olho é rei. E os piores cegos…

Judeus. Judeus em Belmonte

Eu não sei se algum leitor tem lembrança das «aulas» de catequese nos claustros da Sé, da Praça onde anos mais tarde a rapaziada engodava o tempo enquanto observava e atirava parvoíces, piadas e dichotes as raparigas a colorirem o passadiço fizesse chuva, frio ou calor.
Eu recordo-me da alacridade reinante, do ar imponente do então Padre Luís Afonso Ruivo e de algumas catequistas.
Nos intervalos corríamos todas as partes do claustro, numa das paredes, atrás do gradeamento, uma pungente imagem do Senhor da Cana-Verde contemplava-nos. E, nós parados, também olhávamos Jesus e um de nós afirmava terem sido os judeus os culpados de Ele apresentar tão lastimoso estado.
À saída da catequese afoitos ou não, estúpidos sim, passávamos em frente de uma oficina de sapateiro existente na Rua Direita e gritávamos: judeu, judeu. A arruaça podia prosseguir na Rua Abílio Beça. Não me perguntem sobre o princípio da injúria, nem como sabíamos onde ficava a desactivada Sinagoga, muito menos o uso de termo judeu quando queríamos qualificar maldosamente este ou aquele. Era assim.
Longe de ter lido Mendes dos Remédios (curiosos apelidos), nem o Abade de Baçal e Leite de Vasconcelos, só para referir os de maior saliência no saber sobre os judeus de Trás-os-Montes ainda agora, menino tamanino ficava zangado quando me chamavam judeu na sequência de ter cometido alguma falta.
E, chegada a idade de adquirir princípios e noções sobre os valores universais, passei da curiosidade a interessar-me por tudo quanto respeita à civilização judaica na sua matricialidade, irradiação e construção de realizações artísticas, científicas, culturais e técnicas debaixo do postulado religioso ético e moral.
Por assim ser na próxima deslocação a Bragança irei ao novel equipamento cultural dedicado aos judeus em geral e à comunidade sefardita bragançana em particular, pedindo, novamente, desculpa pelos dislates gritados ainda fedelho de nove ou dez anos.
                                            
                                       Judeus em Belmonte
Nos alvores deste ano a Âncora Editores ofereceu-me a obra O Judaísmo em Belmonte no Tempo da Inquisição, da autoria de Jorge Martins. O Editor conhecendo o meu interesse pelo tema e das investigações que tenho realizado no domínio da História da Alimentação, concedendo particular atenção às usanças alimentares judaicas.
Ora, os trabalhos deste empenhado historiador têm-me facilitado informações relativas ao que procuro, as quais estudo, comparo e contrasto com outras de autores portugueses e estrangeiros levando as indagações a separar o trigo do joio (existe joio repetido) no tocante aos costumes culinários uns de forma deliberada, outros de maneira forçada.

Nesta obra, como noutras, é nas forçadas confissões que os atormentados e atormentadas explicam detalhadamente as práticas alimentares, as matérias-primas transformadas em comida e o modo de a conservar quente e em condições no decorrer da observância da não realização de trabalhos aos sábados. 
Historiadores espanhóis defendem argutamente a ideia de a adafina ser base do conhecido cocido (cozido) o qual em Espanha, tal como em Portugal é apresentado debaixo de centenas de expressões, assim ao modo de cada roca com seu fuso, cada terra com seu uso, quer dizer cozido. Os leitores sabem bem do que falo.
Já na obra POPES, PESASANTS, and SHEPHERDS, de Oretta Zanini de Vita, a vila de Belmonte é referenciada como importante entro judaico, salientando produtos, e na CHARLEMAGNE’S TABLECLOTH, de Nichola Fletcher, encontramos referências aos comeres judaicos de antanho a indiciaram pistas referentes à Península Ibérica.
Ora, este trabalho de Jorge Martins é novo e importante contributo no tocante a melhor entendermos as vicissitudes dos judeus para cumprirem os preceitos alimentares contidos no TALMUDE, em terras onde campeava a intolerância escorada na inveja, no obscurantismo e na sórdida avidez de tomar os bens dos acusados de judaísmo.
O revigoramento do interesse pela cultura judaica no âmbito das usanças culinárias e gastronómicas não podem ser desligadas do miolo teleológico, onde os agravos, as inquietações, as perseguições, a tortura e a morte, não impediram, nem impedem, de dentro dos preceitos talmúdicos a construção de criações culinárias fluorescentes fruto da sua milenar história, das incorporações decorrentes da continuada peregrinação de país para país, e prioritariamente devido talento e perspicácia das mulheres, notáveis Mestras cozinheiras.
Árvores genealógicas, estatísticas, gráficos e mapas ajudam à compreensão de um universo comunitário obrigado ao segredo dos segredos, a permanecer no casulo, mas segundo o autor a legitimar “a tese de que a actual Comunidade Judaica de Belmonte tem a ascendência secular belmontense.”
 

Cronicando - O Retrocesso

Desculpem-me os leitores se o título induz em erro, mas não vou falar de Trump. Para nós, portugueses, ainda é uma ameaça longínqua e, olhando para o último século, constatamos que, quando os outros países fecham fronteiras ou a agressão entre os povos culmina na guerra, Portugal tem sido o porto de abrigo. Disso tem feito jus a História. Os valores humanistas que nos caraterizam têm-se perpetuado, e, felizmente, neste campo, tem havido mudança mas não retrocesso. Ao retrocesso, por norma, atribui-se-lhe uma carga negativa, mas é ele que ocupa o meu espaço mental, porque há medidas inovadoras que são verdadeiramente recuos civilizacionais, travestidos de modernismo e infamemente envoltos no embrulho da dignificação da condição humana. Tudo tem o seu tempo, e este não é decerto para experiências sociais.
É o caso da substituição das cantinas sociais por cabazes alimentares que se tornou agora numa das bandeiras do governo. Tal medida irá abranger cerca de trinta e dois mil beneficiários, a maioria entre os dezoito e os sessenta e cinco anos, segundo a secretária de estado da segurança social, como se a capacidade física fosse o critério único para integrar o novo programa por quem precisa de se alimentar. Desconhece-se quantos têm possibilidades materiais para confecionar os alimentos ou ainda se têm os conhecimentos básicos para o efeito, mas isso não é relevante. Quanto se sabe, a distribuição será semanal, mas ainda não se ouviu falar se o cabaz é individual ou familiar e como se vai definir quem comerá mais ou menos. Mais avançados estavam os patrícios romanos que, em troca das vénias, distribuíam a sportula aos seus clientes e de seguida iam todos ao fórum para mostrar o poder do seu senhor.
Por mais que tente enquadrar esta medida numa ideologia socialista, não consigo vislumbrar onde poderá assentar, sobretudo quando, quase em simultâneo, foi divulgado um estudo que englobou 5600 portugueses com mais de 18 anos, onde se concluiu que uma em cada cinco famílias não tem acesso a uma alimentação saudável e que 19,3 por cento se encontram em situação de insegurança alimentar.
Alterar situações sem modificar os contextos é o que se tem feito em todas áreas, nos últimos quarenta anos, e não basta dar o peixe se não se ensinar a pescar. Bastaria aos decisores políticos descer à terra, e aos fazedores dos estudos erguer os olhos do monitor e perguntar como é na realidade a vida das pessoas. Será que tais agentes não sabem, por exemplo, o que acontece aos milhares de cabazes que por este país são distribuídos no natal a famílias carenciadas? Não se pode suprir a carência material se não for acompanhada de formação na cidadania. Até hoje ainda não vi nenhum programa que se preocupasse verdadeiramente com isso e, por tal, os resultados são os expectáveis. 
A garantia dada é que tais situações serão acompanhadas pela Segurança Social e serão avaliados – refere a Secretária de Estado. Poder-se-á perguntar se será do modo como acompanharam a IPSS de Alijó, onde as imagens apresentadas na TVI nos remetem para os tempos dos hospícios sem regras, saúde ou dignidade.      
Afinal não será apenas um retrocesso mas vários.

 

O carteiro já não toca duas vezes

Houve um tempo em que a camioneta do correio chegava sempre ao entardecer a muitas aldeias do nordeste. A criançada digladiava-se para conseguir levar as malas da correspondência até à casa onde se fazia a distribuição, em voz alta e na presença de meia aldeia ansiosa de notícias dos familiares e amigos que estavam longe. Em tempo de guerra e de emigração entregavam-se os aerogramas, as cartas, cartas de avião, bilhetes-postais, encomendas, alegrias e tristezas.
A lendária figura do carteiro honrava a sua profissão e a correspondência era sempre entregue aos seus destinatários, mesmo que o endereço estivesse incorreto, ou insuficiente.
Eram tempos difíceis, mas em que os Correios estavam humanizados e os carteiros conheciam as pessoas, lembravam-se do seu rosto, do seu nome e sabiam de vidas e de ausências.
Chegou o código postal e a máxima era bem apelativa no sentido da rapidez e da eficácia. “Código postal, meio caminho andado”.
Mais tarde, chegou a toponímia e os “números de polícia” ao meio rural e em nome da eficiência e da eficácia tudo se complicou. E o carteiro que todos os dias entrega cartas às mesmas pessoas que conhece e com quem fala, devolve correspondência porque o nome da rua não está correto, ou falta o número de polícia, ou o código postal. E isso acontece, não só no nordeste, mas em todo o país. Claro que há honrosas e lúcidas exceções. Talvez sejam ordens superiores que o carteiro tem que cumprir, escrupulosamente, para não se arriscar a perder o seu precário emprego, muitas vezes de contratado. E a carta volta para trás e esteve tão perto. Devem estar a brincar connosco.
Pessoalmente vou quase todos os dias aos CTT de Bragança. As chefias e os funcionários são duma simpatia e eficácia quase heroica, trabalhando para além do que é humanamente aceitável perante o número de utentes que vão à referida estação dos CTT a determinadas horas do dia. Os quatro ou cinco postos de atendimento que estão disponíveis são manifestamente insuficientes para as multidões que com frequência aguardam, pacientemente, a sua vez. E então quando a máquina que disponibiliza as senhas de atendimento avaria, as coisas complicam-se e formam-se filas enormes, intermináveis. Mas o técnico reparador não tem pressa nenhuma e a máquina fica uma semana inteira inoperacional. Os bragançanos são pacientes, pensarão as esclarecidas inteligências lisboetas. Mais uma vez devem estar a brincar connosco. A paciência tem limites.
Depois, a estação dos CTT onde era presumível que se tratasse de assuntos relacionados com a correspondência, foi alargada a outros serviços sociais o que até se compreende, pois facilita a vida aos utentes. Mas o negócio não para e os CTT invadem a atividade dos livreiros e dos banqueiros. Quanto a mim trata-se de uma concorrência desleal, sobretudo no setor dos livros. E mais, na imensidão dos títulos que a estação dos CTT de Bragança disponibiliza não se encontra à venda um único livro dos autores locais. O capitalismo e o lucro impõem-se à divulgação da cultura e da criação literária do distrito. Questões de escala. Sei de escritores da nossa terra, já conhecidos, que pediram por escrito à administração dos CTT que os seus livros fossem vendidos, à consignação, pelo menos na estação de Bragança. A resposta lamechas não se fez esperar agradecendo o contacto, mas tal pedido não se insere na política de vendas dos CTT. Aqui faz todo o sentido chamar o Padre António Vieira, o jesuíta, para de novo ouvir o sermão aos peixes pregado em São Luís do Maranhão: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
E assim o nordeste, paulatinamente, vai perdendo serviços, vai perdendo recursos, desumaniza-se, desertifica-se e em breve muitas aldeias fecharão as portas. Por isso, nós, não podemos assistir impávidos e serenos a este drama enorme, imensurável que compromete o futuro. Temos que olhar para além do “nevoeiro” de que nos fala Fernando Pessoa e gritar e agir com convicção: transmontanos “é a hora”.

Tio Domingos Afonso, o filósofo do povo

Ter, 14/02/2017 - 10:31


Olá familiazinha! Hoje é o dia dos namorados, dia de S. Valentim. “Admirar é amar com o cérebro. Amar é admirar com o coração”. Parabéns a todos que continuam a namorar e a desfrutar do amor a dois (eu incluído). Uma saudação especial e amiga a dezenas e dezenas de casais da família do Tio João que já festejaram as suas bodas de ouro matrimoniais, os últimos dos quais, já este ano, o Tio Sebastião e a Tia Mariana, de Cernadela (Macedo de Cavaleiros) e o Tio Aníbal e a Tia Aurora, da Póvoa (Miranda do Douro). Temos também alguns casais que já ultrapassaram a barreira dos sessenta anos de matrimónio, como é o caso do nossos Tio Gualter e Tia Maria, de Agrochão (Vinhais), que já namoram há sessenta e sete anos. Que para todos continue a durar o pão da boda.
Neste número, dedicado ao nosso filósofo do povo, Domingos Esteves Afonso, grande cantador típico que como ele, só ele. Era único na maneira de cantar e encantar. Muito católico, aconselhava os pastores a rezar o terço porque “o terço não faz calos nas mãos”. Deus chamou-o na passada terça-feira, dia 7 de Fevereiro. Muitos o choraram sem nunca o terem conhecido pessoalmente. Que tantos anjinhos o acompanhem como vezes nos rezou, cantou, tocou e encantou. Os nossos sentimentos a toda a família enlutada. Paz à sua alma.

 

Radicalismos e refluxos

Ter, 14/02/2017 - 10:29


Entre as aplicações do materialismo dialéctico, com resultados úteis na observação da realidade, encontramos o modelo de análise do processo de interacção entre a superestrutura político-ideológica e a realidade profunda, resistente à mudança, mas sempre em transformação imperceptível, que design