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Regresso ao Purgatório

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Ter, 30/06/2020 - 01:29


Fernando Pessoa quis este país como o rosto da Europa, que “fita, com olhar esfíngico e fatal” o ocidente, o mar imenso e os sinais de venturas e tragédias que se apagam a cada ocaso do astro rei, até que, do oriente, volte a luz que alivia mas também inquieta, porque não se compadece com ilusões ou fantasias, revelando as marcas indeléveis de uma história aos tropeções, de gente dolorida, resignada, disponível para o fascínio dos milagres.
Na versão contada aos simples, durante décadas, a história de Portugal era uma sucessão de milagres, como se nos céus estivesse sempre um bom deus ou alma compadecida para nos salvar das derrotas ou das misérias que, mesmo assim, sentíamos na pele e na alma.
O fado dos milagres começou cedo, em Ourique, com o grande Afonso, protegido contra os mouros numerosos, depois houve uma rainha santa, mais logo Nuno Álvares teria contemplado a virgem sobre uma azinheira, o que lhe deu confiança contra Castela.
As glórias da passagem do Bojador e das Tormentas foram novas maravilhas, antes da “tragédia” de 1580, mas o primeiro rei dos Braganças recuperou a protecção da virgem santa que, bem mais perto do tempo que corre, voltou a uma azinheira para nos dar lugar de honra na salvação do mundo. Pelos vistos, ainda não se consumou tal prodígio.
Mas a esperança nos milagres não arredou. As proclamações de milagres portugueses têm-se sucedido, mesmo quando deveria ser a racionalidade a informar a acção política na condução do país. Reaparecem com roupagens mais discretas, a aproximar-se de metáforas, mas enraizadas na emoção que, geralmente, não acompanha com a razão.
Houve a revolução sem sangue, com mais flores do que tiros, milagrosamente, depois a descolonização exemplar, apesar das guerras que reabriu, com milhões de mortos e estropiados, fomos acolhidos no colo da CEE/UE, houve quem dissesse que nos havíamos alcandorado à condição de Califórnia da Europa, antes de monumental bancarrota, a que não sucumbimos talvez por milagre. 
Neste meio ano de pandemia também fomos expressão de pretenso milagre, agora negado pelas listas negras que nos excluem de passeatas, sem dó nem piedade para os sorrisos simpáticos do Presidente da República, nem para o orgulho ácido do Primeiro-Ministro.
Aparentemente, estivemos perto de escancarar as portas do paraíso mas, afinal, estaremos de novo a brasear no purgatório.
A sorte será que daqui só para o céu, mesmo que leve mais tempo do que todos gostaríamos, a acreditar na narrativa que conhecemos do percurso da redenção.
Perante situações como a que o mundo vive esperar-se-ia de quem governa uma postura determinada pela serenidade, que só o conhecimento sólido permite, pela coragem de não sonegar nenhuma informação, pela firmeza de estabelecer normas sem contemporizar com conveniências tácticas da política imediata, afinal, pelo respeito por todos e cada um dos cidadãos.
Se o desejo inconfessado era voltar a ver as praias cheias e as ruas da capital a abarrotar de variegadas gentes, numa torrente colorida com um sussurro de Babel, então melhor fora pegar-lhe de outro jeito, como dizemos por aqui.

Teófilo Vaz