O presidente e as sendas trágicas do nordeste

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Ter, 10/07/2018 - 10:16


Manhã de sexta, ao balcão de pagamentos da repartição de finanças de Bragança, uma mulher para lá dos setenta, aura de menina de toda a vida, esbelta, suave, de um fulgor discreto e voz serena, pergunta à funcionária se ainda terá tempo de se deslocar a outros serviços para deixar resolvida a questão, porque só tem transporte para a cidade às terças e sextas.

Circunstante ocasional, de ouvido atento, quis saber de que aldeia se deslocara a senhora. Fermentãos, a terra do presidente da câmara. Transporte bissemanal assegurado pelo município, porque as concessionárias já abandonaram dezenas de ligações rodoviárias, deixando a mobilidade dos cidadãos ao esforço das autarquias ou à disponibilidade da carteira de cada um.

Vivesse a cidadã à volta da capital num qualquer dos amontoados de caixotões de betão, rodeados de asfalto e não lhe faltariam autocarros, trinta ou quarenta passagens diárias e se perdesse um, andaria alguns metros e logo chegava um comboio confortável, com música, ar condicionado e avisos das próximas paragens, de dez em dez minutos, todos os dias da semana.

Lembrar-se-á, certamente, que também Fermentãos foi apeadeiro de antiga linha de caminho de ferro, com frequências muito inferiores, mas que permitiam meia dúzia de vezes ao dia subir ou descer da automotora e chegar às finanças, aos correios, ao tribunal, ao cinema, aos cafés, à feira ou à procissão da Senhora das Graças.

Então, a sede de freguesia, ali ao lado, Sendas, era uma estação de referência para gentes do sul do concelho de Bragança e do sudoeste de Vimioso, o que lhe dava importância que se esfumou.

No dia seguinte, sábado, o presidente da República haveria de chegar a Bragança, num avião a jacto, para celebrar 500 anos da Misericórdia, visitar o Centro Graça Morais e inaugurar a rua Mário Soares. Por mais que lhe agradasse uma selfie com sua excelência, teria que ficar a vê-lo na televisão, se o sistema TDT não entrasse a falhar por causa da trovoada, do vento lateral, de uma bátega de água, sabe-se lá.

Nem mesmo teria garantias se, seguindo as modas, dispusesse de computador, mesmo de smartphone, porque, provavelmente, como acontece a muitos nestas paragens, poderia não ter acesso a nenhuma rede de comunicações.

O presidente veio e fez a festa. Elogiou a resistência dos nordestinos e reiterou que não pode haver vários portugais. Aparentemente estabeleceu meta para que assim aconteça a partir de 2023. Mas, todos os transmontanos sentem que tarde piaram os responsáveis pelo resvalar do país para a tragédia. Nem mesmo ele pode alhear-se, a coberto de uma lucidez tardia, de quem não viu porque não quis, anos a fio, a crueldade da omissão relativamente ao destino deste território, destas gentes e das raízes sob ameaça de estiolar para sempre.

Mais do que simpatia, mimos e sorrisos, francos ou amarelos, do que aqui se precisa é de firmeza, coragem e desassombro para arriscar uma ruptura na direcção política, de modo que o país não venha a tresloucar até a diluição no inferno gélido do remorso, do arrependimento piegas ou na negação arrepiante da sua história quase milenar.

 

Teófilo Vaz