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O grau zero da dignidade

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Seg, 30/11/2020 - 20:11


Custa-nos a acreditar no que temos presenciado depois das eleições nos Estados Unidos da América. Já conhecíamos o truão da laca no cabelo cor de laranja e os trejeitos histriónicos com que arrrebica o discurso bacôco, só nos faltava aturá-lo numa birra sem fim, a requerer palmadas adequadas à vergonha que faz passar à construção civilizacional,esforço milenar em nome da dignidade humana.
Temos notícia de um anedotário de caprichos e insanidades de egrégios poderosos, dados ao sangue, ao empalamento, às razias sem piedade, nos tempos duros, quando os rebentos da racionalidade estavam destinados a ser esmagados pelos instintos, num tropel sem rumo.
Também sabíamos que, mesmo agora, convivemos com realidades políticas pouco edificantes, que nos incomodam. Habituámo-nos a localizá-los no imenso bananal, que se estende pela África equatorial e tropical, pela Ásia húmida e pelas Américas quentes.
De facto, quase não tem havido ano sem surpresas, com vagas de tiranetes a arrasar as esperanças de milhões, como se as expectativas de Claude Lévi-Strauss, em “Tristes Trópicos”, estivessem condenadas à eterna frustração, para mal de todos nós.
Não esperávamos, no entanto, que alastrasse, por todo o mundo, a ascensão ao poder, democraticamente legitimada, de verdadeiros velhacos, peralvilhos sem vergonha, que ameaçam conduzir-nos a novas tragédias, encostados ao comodismo, à distracção e à complacência dos cidadãos e das instituições, no que se repete a iminência de virmos a atravessar, outra vez, o túnel dos horrores, que deixou perturbadoras cicatrizes há menos de um século.
O que se passa nos EUA é pior do que o que acontece na Venezuela, na Nicarágua, no Congo, no Uganda, no Tchade, em Moçambique, na Filipinas, na Rússia ou na Turquia. Havia uma referência de dignidade e de defesa dos direitos fundamentais, que vemos arrastados pela torrente do vómito pestilento de um farsante, convencido de que há-de ser capaz de substituir a procura da verdade pela consagração da mentira.
A política é uma das expressões mais nobres da condição humana, construção milenar, sempre sujeita às arremetidas da boçalidade que a natureza não descartou. Por isso se têm dedicado energias à construção da cultura, alternativa ao determinismo da selva.
O risco de retrocessos é inegável, como provam séculos de obscurantismo depois de apogeus civilizacionais de que podemos orgulhar-nos. Quando a acção política conjuntural é determinada por interesses imediatos, pelo eleitoralismo pedante, pelo exercício do poder pelo poder, geralmente descamba na contradição displicente, no capricho, na birra, produtos da incapacidade de olhar a relaidade para além do próprio nariz, com resultados pouco animadores para a continuação do caminho até à Polis, que eleva o homem à alta condição de cidadão.
Assim, não parece curial que, neste país, com responsabilidades históricas e culturais no contexto mundial, se pretenda confundir a política com a perícia intriguista, a habilidade manipuladora, a capacidade de fintar a realidade, para patêgo ver, porque o resultado será, outra vez, o descrédito, a desilusão e o cansaço, que podem demorar muito tempo a superar.  

Teófilo Vaz