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Noventa anos de resignação de uma transmontana

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Ter, 09/10/2018 - 10:06


O Verão estendeu-se, parece que as castanhas podem sair fulecras, nas vinhas foram muitos os cachos secos, as pavias não encheram os ares com o aroma do desejo, nem pão nem palha, nem vacas da cor do ouro, nem novelos de lã alvos a cirandar animam o Outono menino.

Aos noventa anos, uma mulher deste nordeste, de preto vestida, como as suas avós, cabelo branco ordenado pela trança, resiste a desligar-se da sua casinha na aldeia onde nasceu, da cortinha farta de batatas, couves-galegas, pêras de inverno, tomates aos molhos, salsa e salva que lhe reinaram na cozinha, onde não faltaram galinhas de carne firme e houve noites épicas de caldeiros carregadinhos de alheiras a fumegar ou a acolher dezenas de salpicões e chouriços, prontos a pingar das varas sobre a pedra do lar, enquanto brasas quentes refilavam à geada que tornava brancas as telhas vãs.

Resiste, apesar de sentir que lhe vai faltando a força, os médicos não perdem a oportunidade de lhe recomendar cuidados, chazinhos e pés quentes.

Quando o sol desce, de olhos perdidos no horizonte da solidão, depois da novela da tarde até à da noite, se alguém quiser ouvir há-de falar da vida áspera desde a infância, dos tombos pelos montes, chuva e frio a moer os ossos, da cama de palha, das sacas a servir de cobertor, dos socos duros a soar nos lajedos.

Lembra-se de ouvir, há pouco, que nalgumas aldeias já não vive quase ninguém, mesmo de uma onde resta um único homem, de mais de oitenta anos. Lamenta-lhe a sorte, pior que a sua, que também já só se cruza com velhos, cada vez menos, mas não aceita que se abandone alguém assim. O Estado não devia permitir, pobre dos pobres, coitado.

Ao aproximar-se da meia idade seguiu o destino de muitos outros e procurou vida pela estranja, com o homem de sempre, desde crianças. Ele já cá não está. Agora acomoda-se às dificuldades da prole que criaram para lhe fazer companhia cada um de todos os dias.

Na aldeia ainda passa, durante o tempo de aulas, uma carreira duas vezes por dia, que transporta os últimos garotos para as escolas, concentradas na sede de concelho. Mas, para ir ao médico, à farmácia, ao banco ou ao correio não vale a pena passar o dia inteiro na vila. Já está preparada para pagar trinta euros a um táxi. Ainda não percebeu bem que na capital e noutras cidades grandes, os mesmos trinta euros vão pagar um mês inteiro de transportes a toda hora, à vontade do freguês.

Não pôde aprender a ler e já lhe vai fugindo o ouvido. Pouco importa, já não espera grandes novidades no futuro que lhe resta. O que ainda lhe põe um brilhozinho nos olhos são os netos e bisnetos, alguns já vão longe na vida profissional e estudantil. O tempo estará para eles. Infelizmente vêm pouco e à pressa, porque as cidades são exigentes e não lhos dispensam como gostaria.

Por vezes deixa perceber uma resignação atribulada com o destino, que poderia ter sido menos doloroso e mais empolgante. Havemos de reconhecer que não lhe falta razão porque os anos que já viveu não lhe permitiram sentir-se cidadã de corpo inteiro de um país proclamado da liberdade, da justiça, da igualdade e do desenvolvimento para todos.

 

Teófilo Vaz